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"Coach da masculinidade"

Red Pill: entenda como funciona o movimento que pode colocar as mulheres em risco

O Diário de S.Paulo conversou com a psicanalista Vera Iaconelli para entender melhor sobre o movimento e quem são seus seguidores

Red Pill: saiba o que é o movimento que pode colocar as mulheres em risco - Imagem: reprodução Freepik
Red Pill: saiba o que é o movimento que pode colocar as mulheres em risco - Imagem: reprodução Freepik

Vitória Tedeschi Publicado em 29/03/2023, às 13h30


O termo "Red Pill" tem se popularizado cada vez mais nas redes sociais e influenciadores que incentivam atitudes misóginas* têm experimentado um aumento considerável de visibilidade.

Por um lado, essa alta no assunto pode se dar porque ele é considerado um completo absurdo por alguns, mas por outro, há muitas pessoas que realmente concordam com os ideais do movimento e colocam em prática seus ensinamentos.

De maneira simples, a ideologia difundida pelos chamados "coaches de masculinidade*" - os maiores defensores do "Red Pill" - defende a superioridade masculina e considera que, na verdade, os homens é quem são discriminados e violentados pela sociedade.

Na prática, os seguidores desse movimento promovem ideias sexistas* que, muitas vezes, justificam o abuso e a violência contra as mulheres.

A "ameaça" feminina

A partir desse ponto de vista, Vera Iaconelli, Psicanalista, Mestre e Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), define o movimento como uma "resposta às conquistas femininas" e afirma que é um discurso que sempre esteve presente na sociedade, mas que tomou uma nova forma com a ampla disseminação da internet.

Conforme as mulheres vão conquistando espaço, alguns homens vão se sentindo mais ameaçados. E com a ferramenta da internet, eles que estavam espalhados por aí encontram seu lugar no mundo, porque eles encontram outros homens com quem eles compartilham ideias, se identificam, se reconhecem e são reforçados nesse lugar", diz ela.

A psicanalista ainda reforça que quanto mais machista* o discurso desses homens, mais eles são reconhecidos e até mesmo monetizados - passam a ganhar dinheiro com esse tipo de conteúdo nas redes sociais.

Assim, seria nesse momento, quando eles recebem algo em troca, que esse tipo de produção seria incentivada a continuar existindo e se proliferando.

Em suma, ela afirma que o movimento "Red Pill" não passa de, literalmente, uma resposta dos homens às resistências femininas e maior presença das mulheres em diversos ambientes da sociedade. Ou seja, o grupo surge como uma resposta ao empoderamento feminino.

A gente está falando de uma disputa de poder, e conforme eles sentem que estão perdendo o poder sobre as mulheres eles querem reaver isso, reforçando esse lugar de privilégio", define Vera.

No entanto, apesar do termo estar cada vez mais presente na internet e já colecionar centenas de memes (confira famoso meme do "Campari" mais abaixo), muitos ainda têm diversas dúvidas sobre o assunto, por isso, o Diário de S.Paulo resolveu reunir os principais conceitos que ajudarão a entender de uma vez por todas do que se trata o tão falado movimento.

Afinal, por que "Red Pill"?

O termo "Red Pill" surgiu como uma referência à pílula vermelha do filme Matrix (dirigido pelas irmãs transgêneras Lana e Lilly Wachowski), no qual o protagonista pode escolher entre tomar a pílula azul e continuar num mundo de ilusões, ou engolir a vermelha e ser confrontado com a realidade nua e crua.

Relembre a cena abaixo:

Ou seja, uma vez que o filme é uma referência ao mito da caverna, de Platão. Na analogia, a pílula azul seria uma forma de ver o mundo em negação, sendo uma crítica a discursos negacionistas e ao medo da mudança, por exemplo.

Mas no universo dos seguidores do movimento em questão, as pílulas vermelhas (tradução de "Red Pill") mostrariam aos homens a “verdade”: que eles são as vítimas da sociedade e foram as feministas* quem ocultaram essa realidade.

Vale ainda citar que o termo que ficou conhecido em inglês pois um dos expoentes desse universo é o britânico-americano Andrew Tate. O influenciador é ex-participante do Big Brother do Reino Unido e já declarou que "mulheres são propriedades de homens".

A hashtag com seu nome acumula mais de 22 bilhões de visualizações no TikTok e Tate está preso na Romênia, onde vive desde 2017, acusado de estupro, tráfico humano e formação de grupo criminoso. Ele nega todas as acusações, mas já teve vários apelos por liberdade rejeitados.

Movimento Red Pill no Brasil

Já no Brasil, desde o início deste mês o assunto vem ganhando uma "relevância" cada vez maior. Isso porque marca o momento em que aconteceu o sério caso envolvendo o influenciador Thiago Schutze a humorista Lívia La Gatto, que voltou a atenção dos internautas brasileiros para o movimento Red Pill no país.

Um vídeo do influenciador brasileiro, de 34 anos, que se apresenta como "coach de masculinidade", viralizou quando ele apresentou suas ideias de manipulação feminina com o exemplo de uma mulher que oferece cerveja a um homem que bebe Campari em um bar, e ele se nega pois apenas bebe destilado. Foi aí que ele ganhou os apelidos de "Coach do Campari" e "Calvo do Campari".

Thiago tem um perfil na internet, que se chama Manual Red Pill, e é apenas uma das centenas de perfis que pregam a superioridade masculina nas redes sociais. As ideias de Andrew Tate já foram reproduzidas na página do brasileiro.

Apesar de parecer algo corriqueiro, uma cena em um podcast que viraliza e gera memes, o caso ficou muito sério quando uma humorista divulgou um vídeo (assista abaixo), que foi amplamente ironizado, e o caso passou a ocupar as páginas policiais. Isso após Thiago ameaçar Lívia: “Você tem 24 horas para apagar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, é processo ou bala”, escreveu ele em uma mensagem.

No entanto, a artista decidiu registrar um boletim de ocorrência. "O discurso do Thiago, como o de tantos outros, pode soar apenas ridículo e risível, mas é essencialmente a manifestação de um ódio de gênero", falou Lívia à VEJA. Com a repercussão da história, outras pessoas relataram ter recebido recados de conteúdo parecido com o daquele enviado por Thiago.

Confira o vídeo que viralizou:

@mmcortesoficial

O CARA DO CAMPARI - CORTE COMPLETO.

♬ som original - MM CORTES PODCAST

Apesar de ter sido ironizado e muitas pessoas terem se divertido com o trecho, é muito importante salientar que o que pode parecer um discurso insignificante é na verdade a representação do pior que o movimento pode despertar nos homens: a violência contra as mulheres.

A reação de Thiago Schutz é um flagrante justamente de que esse discurso que parece muito simples, na verdade tem no seu bojo a ideia de destruição, e de submissão, e de subalternização da mulher. E que quando ela se nega a ficar nesse lugar esperado justamente o que vem é a violência", destaca Vera.

O Red Pill pode colocar as mulheres em risco?

Os males do mundo têm sido atribuídos às mulheres há milênios. Basta olhar para as histórias de Pandora, Eva e Medusa. E quando movimentos como o Red Pill ganham campo, conforme defende Vera Iaconelli, eles fomentam essa violência contra as mulheres e representam potencial perigo.

Quando a gente chega lá na ponta da violência contra a mulher, essa violência que aparece na forma de feminicídio, estupros, torturas, assédio moral, assédio sexual, você tem não só indivíduos isolados capazes de cometer crimes, mas sim uma cultura na qual a mulher é pensada como um objeto à disposição do homem", inicia ela sobre toda a cultura que envolve o movimento.

Vera ainda complementa que acredita que a ideia vendida pelo Red Pill, de que a mulher tem que ceder aos propósitos do homem, pode sim terminar nos extremos da violência de gênero. Isso porque, quando, na prática, essa relação vai se mostrando insustentável e a reação é a da violência.

"É o próprio discurso que leva ao feminicídio, embora ele apareça na ponta, no começo. Tão anódino [banal], tão simples, na verdade é desse discurso que se alimenta a cultura do estupro, de violência e do feminicídio da nossa sociedade", enfatiza Vera.

Vale citar que, segundo a pesquisa “Visível e invisível: vitimização de mulheres no Brasil” do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todas as formas de violência contra mulher aumentaram em 2022, atingindo principalmente as negras, divorciadas e com filhos. Ou seja, a violência contra a mulher no Brasil já é uma realidade, e uma realidade muito triste.

Quem são os seguidores do Red Pill?

Apesar de parecer absurdo, existem cartilhas, cursos, palestras e até livros sobre esse assunto. No material eles elencam uma série de regras para que os seguidores do movimento consigam conviver nesta sociedade, segundo eles, deformada e corrompida pelo feminismo.

Eles defendem que a parceira perfeita seria aquela de perfil obediente, que entende o homem como o chefe da casa, não usa roupas curtas e exala delicadeza. Elas também não podem ter filhos nem ser divorciadas, muito menos defender ideais de igualdade.

Mas afinal, quem são essas pessoas que concordam com os "mandamentos do Red Pill"? Vera acredita que é possível ter dois grupos de pessoas.

O primeiro seriam os adolescentes, que estão procurando entender melhor o que é ser homem na sociedade atual, sobre se portar e como se dirigir. Isso porque ele tem medo e é inseguro em relação ao próprio corpo.

Então, esses homens, eles podem estar ali por uma certa curiosidade, tentando se esquivar das dificuldades próprias da adolescência fazendo uma espécie de bando no qual todo mundo diz que os homens são melhores e que as mulheres têm que obedecer", explica ela sobre o primeiro grupo.

Além deles, a psicanalista também acredita que existam homens mais maduros que tiveram experiências, que foram casados, tiveram filhos e estão tentando reaver um lugar perdido e fantasiado junto às mulheres.

De qualquer jeito, não é à toa que eu comparo adolescentes com homens maduros, porque o que está em jogo é uma fragilidade, evidente em relação à sua própria sexualidade, à sua própria masculinidade, aos modelos de gênero. E que vai tendo que ser compensada com essa posição de reaver um lugar de suposta superioridade masculina", diz ela.

Vera ainda enfatiza que, no geral, os seguidores do movimento têm em comum uma "fragilidade psíquica considerável". Seja ela circunstancial, como a que se espera de adolescentes em fase de desenvolvimento, ou estrutural, como a vista em pessoas mais velhas, que apesar de já terem certa idade e muito mais experiência podem nunca ter conseguido superar a questão da adolescência.

Masculinidade X Machismo

Em meio a este contexto de discurso de ódio e incitação da violência contra a mulher é muito importante diferenciar alguns conceitos essenciais (confira outros mais abaixo) que podem ser confundidos quando o discurso dos Red Pill é analisado.

Isso porque, ao questionar as falas dos seguidores do movimento é possível colocar em xeque o conceito de "masculinidade", termo muito usado por eles, mas que na realidade não representa os ideais negativos e problemáticos que circundam o grupo.

É preciso fazer uma distinção muito importante entre masculinidade e machismo. A masculinidade assim como a feminilidade ela é composta por ideias próprias de cada época [sobre os gêneros]. Agora, o machismo é fazer supor que o masculino é superior ao feminino, é outra história", explica Vera Iaconelli.

Ela destaca que confundir esses dois conceitos: de masculinidade e de machismo, é muito perigoso, e que é importante levar em consideração que não existe problema nenhum na masculinidade por si só, isso porque "é importante que os homens pensem e façam seus coletivos masculinos, nos quais eles pensem o que é ser homem hoje, o que é ser pai hoje. É importante pensar na própria masculinidade".

No entanto, por outro lado, o machismo estabelece uma hierarquia entre os gêneros, ou seja, é uma coisa completamente diferente da masculinidade. Em suma, enquanto a masculinidade é um conjunto de características presentes em um homem para ser considerado um homem, o machismo é uma discriminação das mulherescomo sendo inferiores aos homens.

Por isso, a problemática do discurso dos Red Pill não estaria em "pregar" a masculinidade, visto que isso é algo natural de uma sociedade composta por diferentes gêneros, mas sim, usar esse termo para encobrir ideias machistas que são discriminatórias e podem até ser criminosas, representando perigo real para as mulheres.

Termos para entender melhor

*1 - Misoginia é uma palavra que tem por definição o ódio às mulheres. A origem desse termo é grega e vem dos vocábulos 'miseó', que significa "ódio", e 'gyné', que tem como tradução "mulher". Esse conceito abarca os sentimentos de desprezo, preconceito, repulsa e aversão às mulheres e ao que remete ao feminino;

*2 - Masculinidade é um conjunto de ideias sobre o que é ser homem em diferentes situações;

*3 - Sexismo é o ato de discriminação e objetificação sexual, é quando se reduz alguém ou um grupo apenas pelo gênero ou orientação sexual. Um dos casos mais comuns de sexismo é estipular que a cor rosa está relacionada ao gênero feminino, e o azul ao gênero masculino;

*4 - Feminismo é um movimento que luta pela igualdade social e de direitos para as mulheres e busca combater o modelo social baseado no patriarcado e os abusos e a violência histórica contra as mulheres,

*5 - Machismo é uma discriminação criada pelo sistema patriarcal [onde prevalecem as relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres], através do pressuposto de que mulheres são inferiores aos homens.

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