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COLUNA

Um ano da guerra na Ucrânia

Um ano da guerra na Ucrânia - Imagem: Divulgação / UKRAINE STATE EMERGENCY SERVICE
Um ano da guerra na Ucrânia - Imagem: Divulgação / UKRAINE STATE EMERGENCY SERVICE
Marcus Vinícius De Freitas

por Marcus Vinícius De Freitas

Publicado em 15/02/2023, às 08h27


Embora a Guerra da Ucrânia, paulatinamente, tenha-se banalizado e ocupado cada vez menos relevância nas páginas dos jornais, sua influência será enorme na ordem mundial. Embora o Brasil esteja distante do conflito e o assunto tenha tido menor relevância em anos politicamente conturbados, é importante enfatizar os três aspectos fundamentais em que este conflito já alterou profundamente o cenário global.

Em primeiro lugar, a Europa, que é o continente mais afetado pela atual guerra e crise, tem visto seu cenário de segurança passar por uma profunda alteração. Da Alemanha, que passou a armar-se, à Suiça que renunciou à neutralidade, além da expropriação de riquezas dos oligarcas russos, Putin conseguiu fazer com que o Velho Continente retrocedesse o relógio do tempo ao final da Segunda Guerra Mundial, reavivando a Guerra Fria, que por décadas fez a humanidade viver com a perspectiva de um confronto nuclear. Vimos, ao longo do processo a inclusão, na Organização do Atlântico Norte (OTAN), de Finlândia e Suécia, países historicamente neutros numa Europa  e a eventual submissão da Ucrânia à esfera de influência russa. E, com a crise energética, também temos visto o continente europeu empobrecer.

A guerra da Ucrânia também alterou, profundamente, a posição global dos Estados Unidos, transformando-se num divisor de águas que encerra seu domínio hegemônico. Vários erros estratégicos cometidos pelo país têm tornado irreversível sua trajetória de declínio, apesar da enorme resistência que tem apresentado. Neste novo cenário, os Estados Unidos terão de conviver com outras potências numa ordem multipolar de governança global. O dólar, que representava um instrumento eficaz nas sanções impostas a países que se contrapunham aos Estados Unidos, atualmente, corresponde a somente 40% das transações globais, concorrente ao Euro e outras moedas, como o Renminbi, da China, que, paulatinamente, ampliam seu espaço econômico e comercial global de maneira irreversível. No caso chinês, é ainda mais intenso à medida que o país se consolida como como maior e mais imprescindível parceiro econômico da grande maioria dos países.

Os Estados Unidos têm enfrentado contratempos substanciais nos últimos anos: o país não conseguiu derrubar Assad, na Síria, perdeu no Afeganistão, de onde saiu de maneira vexatória, e sua relevância no Oriente Médio vêm diminuindo, particularmente pelas ações desastrosas após o Onze de Setembro. Diante disso, Rússia, Irã, Turquia e Coreia do Norte, dentre outros, têm-se aproveitado deste momento de debilidade para solidificar sua atuação.

O terceiro aspecto importante é a divisão global cada vez maior. O isolamento da Rússia pelos Estados Unidos e Europa, com a mudança do apelo global “contra a guerra” para uma movimentação sistemática “contra a Rússia” revelou rachaduras no sistema internacional e incrementou as incertezas globais. Observou-se, claramente, que o objetivo da ação ocidental não era a defesa dos valores da soberania e integridade territorial da Ucrânia, mas muito mais uma movimentação no tabuleiro para estrangular a concorrência no curto, médio e longo prazos.

A forma como as sanções foram utilizadas e a intensidade da imposição levantaram sinais vermelhos a todos os países que, por acaso, ambicionam uma voz mais ativa na ordem internacional. E, de fato, os resultados não poderiam ter sido piores. A estrutura econômica para sufocar a Rússia não funcionou e os países europeus, em razão da assimetria na dependência dos recursos produzidos pelo país euroasiático, têm sido muito prejudicados. Além disso, a crise energética que se instaurou no continente europeu tem sido difícil de sobrepujar, particularmente em razão da falta de alternativas que pudessem substituir, de modo rápido e econômico, a produção russa.

No campo militar, a Rússia encontrou uma Ucrânia resiliente. Volodymir Zelenskyy soube utilizar, de maneira brilhante, a mídia para construir uma rede internacional de solidariedade ao país. Com isto garantiu, ainda que parcialmente, acesso a um arsenal militar sem precedentes. Com isto, as expectativas de Vladimir Putin de uma vitória rápida foram frustradas. E o cenário preocupa porque a linha se tornou muito tênue com relação ao envolvimento da OTANdiretamente no conflito. Preocupa o cenário até porque qualquer ação equivocada poderia ensejar um escalonamento da guerra sem precedentes.

O fato é que, passado um ano da Guerra na Ucrânia, o mundo ficou muito mais inseguro e a estabilidade pós-Guerra Fria parece exaurir-se cada vez mais. A economia global, tampouco, conseguirá recuperar-se tão rapidamente quanto se esperava após o fim da pandemia da Covid-19. Para piorar, muitos pretendem, no Ocidente, reproduzir as mesmas técnicas do passado buscando, através dela, conter o avanço de eventuais concorrentes.

O impacto desta guerra mudará os próximos anos e décadas. Como bem ensinou Eurípedes: “tudo é mudança; tudo cede o seu lugar e desaparece”. O mundo que conhecíamos desapareceu no último 24 de fevereiro. Para sempre.

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