Marcus Vinícius De Freitas Publicado em 27/07/2022, às 08h26
Passados seis meses do conflito entre Rússiae Ucrânia, a questão da guerra parece ter-se banalizado e o destaque das semanas iniciais do conflito esvaneceu, com uma preocupação reduzida sobre o impacto deste importante divisor de águas na globalização, na governança global e na ordem mundial como a conhecemos.
Não há dúvida que o mundo respirou tenso ao ver as tropas russas invadindo o território ucraniano, pela segunda vez, neste século, naquele fatídico 24 de fevereiro de 2022. O mundo, que estava preocupado com mais uma onda da terrível pandemia da Covid-19, que ceifou milhares de vida em todo o globo, ainda ressentia os efeitos desta, particularmente quanto ao desabastecimento global, inflação e recuperação econômica lenta. A impressão era de que o impacto da Covid-19 seria profundo e que demoraríamos décadas para uma recuperação global efetiva. Teorias conspiratórias prosperaram durante a pandemia, tentou-se um descolamento global da Chinae muitos se questionaram sobre os benefícios efetivos da globalização. O mundo ainda avaliava o impacto de uma pandemia sem precedentes e quais as medidas a tomar para recuperar o tempo e impacto econômico.
Putin, ao movimentar as tropas, deslocou a pandemia a um segundo plano. A Guerra da Ucrânia logrou acentuar, ainda mais, as perspectivas negativas quanto ao cenário pós-Covid 19, uma vez que agregou à pandemia maior instabilidade global nos alimentos, nas cadeias de produção e abastecimento e, principalmente, na paz mundial. Putin, ao invadir a Ucrânia com a intenção de conquistar território e na tentativa de restaurar um pouco da decrescente influência russa em sua própria região, rompeu um dos princípios basilares da ordem e do direito internacional desde 1945: guerras somente poderiam ocorrer no caso de legítima defesa ou quando autorizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Guerras para invasão e conquista territorial são anátemas. Toda a edificação do sistema internacional atual se baseia na igualdade soberana dos estados e na impossibilidade de supressão territorial. Putin, uma vez mais, contrariou este importante princípio da coexistência mundial.
A guerra preocupou muito inicialmente: a aflição nuclear era a maior de todas pelo impacto que geraria. Além disso, a possibilidade de provocar a entrada da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)no conflito também era perturbadora, porque geraria, certamente, uma 3ª Guerra Mundial. Havia, ainda, o temor de que a China sentisse a tentação de realizar algum tipo de ação militar contra Taiwan no processo de buscar a reintegração histórica da ilha à China continental. Para alívio global, nenhuma destas três situações ocorreu até o momento. E, provavelmente, a situação deverá manter-se assim.
Observarmos que algumas crenças do Ocidente tampouco se tornaram realidade. As sanções, por exemplo, não estrangularam a Rússia como preconizado. A guerra das mídias sociais não exerceu a pressão que se supunha que teriam sobre a Rússia, seu povo e até mesmo Putin. E, por fim, a fragmentação da atuação coletiva europeia também não ocorreu. Apesar das assimetrias, o continente logrou manter uma voz mais homogênea na situação, embora a crise energética, em breve, quebrará este posicionamento. A União Europeia tem elevada dependência da Rússia, que é o segundo maior produtor de gás natural e o terceiro de petróleo. Qualquer reestruturação energética, por mais desejada que seja, será cara e, em muitos casos, inviável.
No entanto, é no cenário mundial que a guerra faz sentir seus maiores impactos. Em primeiro lugar, o predomínio dos Estados Unidos na ordem global já não é mais uma realidade. O mundo unipolar rapidamente se transforma em multipolar. Apesar de Washington ainda deter os melhores equipamentos militares, equívocos como a atuação nos Balcãs, Iraque e Afeganistão, diluíram muito do capital moral norte-americano e da percepção de invencibilidade do país. Além disso, notou-se que, embora a Europa tenha apresentado relativa unanimidade na atuação, ainda permanece fragmentada quanto aos seus objetivos de longo prazo e alguns países, na tentativa de buscar algum tipo de protagonismo, como o Reino Unido, vão, lentamente, dando-se conta de que a relevância do passado glorioso tem pouco peso no presente.
A inflação globalizada, os problemas graves nas cadeias de produção e distribuição e a dependência alimentar, tanto em grãos como fertilizantes, realçou, ainda mais, os profundos impactos causados pela globalização, cuja irreversibilidade, inicialmente questionada, é uma realidade. Além disso, o impacto da invasão gerou um tsunami de milhões de refugiados ucranianos dentro da Europa, que, inicialmente, os recebeu de braços abertos, mas à medida que o tempo passo, verá ascender a xenofobia em todos os rincões do Velho Continente, particularmente afetados pela crise de alimentos, moradia, transporte, energia e acesso à educação.
O mundo, como conhecido e vivido até este ano, em sua estrutura de governança e ordem, se encontra em processo profundo de ebulição e modificação. Certamente, as futuras gerações viverão sob numa nova ordem mundial muito distinta daquela que prevaleceu nos últimos 77 anos. A esperança é de que neste novo capítulo da história haja, apesar dos conflitos que certamente advirão, um espírito maior de cooperação. O velho ditado chinês, “as chamas tornam-se mais altas quando todos botam lenha”, deve recordar-nos da necessidade de interdependência e do destino compartilhado que temos neste condomínio chamado Terra. Ignorar isto, levando a individualidade – e não o coletivo – ao extremo tem gerado injustiças, guerras e instabilidades.
Putin alterou o cenário global e a história do século XXI. Ainda ignoramos o final deste conflito entre Rússia e Ucrânia. Embora a guerra ocupe, agora, um lugar de menor destaque – em que pesem as milhares de vidas perdidas – é importante que a humanidade jamais perca a confiança no futuro, a esperança por dias melhores e o desprezo à brutalidade do conflito. Os dias melhores ainda estão por vir.
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