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Resultados inesperados

Por Marcus Vinícius de Freitas*

Resultados inesperados
Resultados inesperados

Redação Publicado em 18/05/2022, às 00h00 - Atualizado em 19/05/2022, às 09h45


Por Marcus Vinícius de Freitas*

Resultados inesperados

A Guerra da Ucrânia, iniciada há quase três meses, aos poucos vai-se banalizando entre as inúmeras notícias que fazem parte da vida diária e perdendo a relevância das primeiras páginas da cobertura jornalística. A natureza humana tende a banalizar rapidamente os eventos na busca constante por novos fatos e situações.

A Guerra que se esperava ter uma duração mais curta vai lentamente se transformando em algo corriqueiro para aqueles que não a estão sofrendo e, assim, muito daquele sentimento externado num primeiro momento vai também diluindo. O fato é que a Ucrânia, preparada para um confronto desde 2014, tem oferecido uma resistência maior à Rússia. Esta, por sua vez, também tem consolidado seu domínio e expansão territorial e parece seguir a estratégia de, eventualmente, bloquear o acesso ucraniano ao Mar Negro, tornando o país extremamente dependente da Rússia, não importa o governo que venha a suceder o atual.

A Guerra da Ucrânia, um confronto que tem restaurado muito dos temores da Guerra Fria, particularmente  a possibilidade de uma hecatombe nuclear, representa um divisor de águas na história futura da humanidade. Esperava-se que com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o colapso da União Soviética, em 1991, a tensão Estados Unidos-União Soviética chegasse a um fim. Esperava-se, ainda, que a Rússia, um novo país sem a ideologia marxista buscaria e alcançaria um lugar de destaque no novo contexto global, com um papel fundamental nesta nova ordem mundial que se redesenhava após tantos anos de uma guerra que produziu um enorme desgaste global e uma polarização impressionante, que é até hoje sentida nos sistemas políticos de vários países, no debate diuturno entre capitalismo e comunismo.

No entanto, a Rússia após o colapso da União Soviética, assim como os todos os países que lhe eram satélites, enfrentaram problemas profundos de transição, pelo fato de desconhecerem, após décadas sob o regime comunista, a forma capitalista de criar mercados e avançar economicamente. Diferentemente da China, que optou por fazer uma transição gradual do sistema socialista para um capitalismo adaptado às características chinesas, com particular ênfase ao processo de transição no campo, a Rússia e seus satélites queriam tornar-se, rapidamente, como os países ocidentais. Para acelerar o processo, muitos contavam com a entrada na Comunidade Europeia (posteriormente, União Europeia) como uma forma de acelerar o processo e facilitar-lhes a transição. Os requisitos da União Europeia para admissão dos novos membros poderiam ser resumidos em quatro aspectos: estado de direito, democracia,  economia de mercado e a capacidade para implementar as regras e determinações do direito supranacional comunitário. O receituário parecia simples, mas os países sofreram profundas mudanças na forma de conduzir suas atividades. Por certo, olhando-se para trás, é possível observar o enorme progresso que estes países alcançaram, principalmente em razão dos benefícios transferidos pela União Europeia.

No entanto, à promessa de novos tempos também vinha atrelada a Aliança Militar representada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Os países passaram a buscar na OTAN a proteção contra possíveis inimigos externos que lhes prejudicassem as conquistas alcançadas. Paulatinamente, a OTAN foi reduzindo a esfera de influência russa e avançando regionalmente. A situação doméstica, com um Boris Yeltsin incapaz de conduzir o país de maneira efetiva, forneceu o sinal necessário para que se avançasse e diluísse a possibilidade do retorno da Rússia a uma posição mais relevante. Ao assumir o poder, Putin ainda enfrentou os problemas domésticos por um tempo antes de retomar a agenda internacional como sua prioridade. Mas os danos já estavam causados e Putin ainda ouviu Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos, reduzir a importância da Rússia ao chamá-la de mera potência regional. Para Putin, que considera o colapso da União Soviética como a maior tragédia do século XX, este tipo de condescendência manteve aceso o rancor pelo avanço ocidental e a busca incessante de recuperação da Mãe Rússia.

Ao invadir a Ucrânia, no fatídico 24 de fevereiro de 2022, Putin promoveu uma alteração no tabuleiro global. Em primeiro lugar, conseguiu dar sobrevida a Joe Biden, que enfrenta problemas econômicos domésticos e parece incapaz de resolvê-los, com a probabilidade de perderia a maioria legislativa. Também foi importante para Boris Johnson que busca, sempre que possível, evitar uma discussão aprofundada sobre as desvantagens e os impactos negativos do Brexit no Reino Unido. A Emmanuel Macron foi importante na reeleição porque conseguiu projetar-se como estadista ao condenar Marine Le Pen como pró-Rússia. Restaurou a OTAN como tratado de defesa, inclusive com a provável entrada de novos países como Suécia e Finlândia. Ademais, deu à União Europeia um objetivo comum numa organização que enfrenta sempre desafios pela assimetria de seus membros. E, por fim, deu ao Ocidente alguma esperança de manter o século XXI ainda sob o domínio do eixo transatlântico.

Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que a alteração do tabuleiro global também fez aparecer algumas rachaduras na União Europeia quanto à implementação das decisões tomadas, os erros estratégicos dos Estados Unidos no processo de contenção dos avanços russos, o impacto inflacionário global causado pelo aumento no preço das commodities de energia, o reconhecimento da inefetividade das sanções, particularmente no caso de uma economia grande como a russa, além do temor nuclear. Dentre todas as consequências, a pior de todas, sem dúvida, é a restauração dos temores dos tempos de Guerra Fria, que, de fato, nunca acabou, mas simplesmente se havia camuflado.

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*Marcus Vinícius De Freitas
Professor Visitante, China Foreign Affairs University
Senior Fellow, Policy Center for the New South
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