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O sequestro do sertanejo por um projeto político

E, muitas vezes, ao comentar com os amigos, ouvia um: “Deixa de ser chato, e vamos cantar Evidências nas festas.” Sim, eu virei o chato que criticava o

kleber carrilho
kleber carrilho

Redação Publicado em 04/06/2022, às 00h00 - Atualizado em 10/06/2022, às 10h50


Este é um texto que demonstra uma frustração, e por isso o evitei durante muitos anos. Ele tem origem em um evento pessoal, em junho ou julho de 1998. Era o ano da reeleição de FHC, a seleção brasileira perdia para a França a final da Copa, eu era um aluno de segundo ano das Ciências Sociais da USP e, mais ou menos por aqueles dias do fracasso da seleção, fui convidado para ir a uma balada sertaneja em São Caetano do Sul.

E então vi algo que me marcou. Um monte de gente da minha idade reproduzia os trejeitos de uma sociedade que parecia não existir mais. O peão com cara de bravo, uma certa violência simbólica na sedução, respondida com a subserviência das meninas. Eu achei estranho e, a partir daquele momento, comecei a construir a compreensão de que aquilo não era somente a representação aparente.

Eu deveria ter me debruçado para estudar com profundidade, mas nunca fiz isso. Não fiz pesquisa, não escrevi nenhum artigo, e tudo o que fiz na área acadêmica foi por outros cantos. Mas aquele evento e tudo o que foi possível observar depois, nos programas de TV e nas festas de casamento, nunca deixaram de me incomodar.

E, muitas vezes, ao comentar com os amigos, ouvia um: “Deixa de ser chato, e vamos cantar Evidências nas festas.” Sim, eu virei o chato que criticava o sertanejo. E, talvez por incompetência minha, a ideia que aparecia no meu discurso era que os sertanejos tinham intenções políticas.

Claro que não é isso. Os cantores de sertanejo, em suas diversas manifestações, desde o “raiz” até o “universitário”, incluindo aí a onda das mulheres, são artistas que querem fazer a sua arte. Porém, eles foram sequestrados pelo projeto político conservador que sempre esteve próximo ao poder, inclusive nos anos em que se diz que a esquerda ficou no poder.

É claro que não é todo o mundo. E eu até vi esta semana um vídeo da finada cantora Marília Mendonça dizendo “ele não” em 2018. Mas o que se desenvolveu não foi exatamente uma defesa de um candidato ou outro, mas sim uma forma de pensar, de se acostumar com os problemas sociais, com a desigualdade econômica, além da reprodução do machismo estrutural como algo “que faz parte da nossa sociedade”.

E por que estou escrevendo isso agora? Porque esta semana, compartilhei uma notícia sobre o caso de Gusttavo Lima, em que se nota que ele se beneficiou (inconscientemente ou não) de verbas públicas que aparentam irregularidades.

Um único ex-aluno, que tenho que dar o nome aqui, Fernando Henrique Rossini, lembrou-se da minha insistência para que olhássemos muito além da música interessante que os sertanejos mostravam.

Ah, você pode dizer, mas esta é a cara do Brasil! É verdade, não vou negar. Mas será que dá para ir além do óbvio e entender que essa cara do Brasil precisa ser discutida?

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