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O discurso já estava pronto, mas onde foi parar o homenageado?

O discurso já estava pronto, mas onde foi parar o homenageado? - Imagem: Acervo Pessoal
O discurso já estava pronto, mas onde foi parar o homenageado? - Imagem: Acervo Pessoal
Reinaldo Polito

por Reinaldo Polito

Publicado em 05/11/2023, às 05h16


Esta é uma história de descaminhos literários e de exemplos marcantes da história da arte de falar em público.

Recebi um telefonema de Bolonha. Estranhei. Por que o Max, que editava meus livros na Itália, estaria me ligando de lá? Por que não enviou uma mensagem por e-mail, como sempre fez? Devia ser assunto muito importante.

Logo nas primeiras palavras ele desvendou o segredo. Disse que estava nas proximidades da Universidade de Bolonha e que ficara surpreso com a quantidade de livrarias especializadas em obras de Direito. Não quis perder tempo e ligou de lá mesmo para me fazer uma proposta, que eu escrevesse um livro de oratória para advogados. Sem pensar muito, topei.

A minha rápida resposta tinha motivo. As técnicas de oratória sempre foram aplicadas de forma magistral principalmente pelos pregadores religiosos, políticos e advogados. Tenho um bom acervo de livros com discursos proferidos por eles. Alguns deles são tão primorosos que li mais de uma dezena de vezes.

Fiz essas leituras apenas por deleite, pelo prazer de analisar a habilidade dos oradores em organizar o raciocínio, elaborar a linha de argumentação e, em muitos casos, refutar as objeções. Ao aceitar o convite do editor, senti que, sem ter consciência até aquele momento, o livro estava pronto. Bastaria mostrar aos leitores como o que existia de mais relevante na teoria da oratória fora posta em prática pelos melhores advogados da história.

Separei as mais significativas peças oratórias, aproveitei um feriado prolongado, fui para a minha cidade natal, Araraquara, no interior de São Paulo, onde ninguém interromperia o meu trabalho, e varei dias e noites escrevendo. Estava tão envolvido e entusiasmado com aquela tarefa que quase não dormia. Bastou contextualizar as técnicas com os exemplos para alinhavar os capítulos. Voltei para casa com o livro pronto.

Um dos discursos que incluí foi a de Brasílio Machado, chamado de “O paladino do Direito”. Talvez não exista melhor exemplo de competência oratória, capacidade de improvisação e de presença de espírito que a demonstrada por ele na homenagem que fez a José Bonifácio. Uma preciosidade!

Os abolicionistas de São Paulo haviam preparado uma homenagem a José Bonifácio de Andrada e Silva. Brasílio Machado foi o orador convidado para fazer o discurso e falar em nome de todos. Na última hora, entretanto, veio a notícia preocupante: o homenageado não compareceu ao evento.

As pessoas ficaram indignadas com tamanha desconsideração e passaram a criticar aquela ausência. A situação do orador era delicada. Precisava fazer a homenagem, enaltecendo as qualidades do homenageado, mas ao mesmo tempo considerar a revolta que se apossara da plateia. Veja a genialidade com que contornou o difícil obstáculo:

“Senhores:

Se não me fora consentido dominar as revoltas do pesar, que uma circunstância do momento instiga, mas que a reflexão modera, e eu pudesse, numa síntese enérgica, condensar as interrogações que mal se calam na boca de quantos me escutam, sob cada palavra minha eu deveria sentir as palpitações de uma surpresa amarga, e em cada gesto deveria adivinhar o constrangimento.

Por que nos reunimos? Para afirmar... E o que afirmamos? Uma homenagem. Mas quem pressuroso acode recebê-la? Ninguém! Pois que o eminente cidadão, em cuja honra se organiza essa homenagem, não pôde vencer as travadas linhas da solidão e da modéstia em que se isolou, e destarte se esquiva às exclamações que o esperavam.

Não senhores, o que afirmamos não é um homem, é um princípio; não é a estátua, é a significação; não é o foco, mas a irradiação; não é a pessoa, mas a propaganda.

Ausente, José Bonifácio se distancia, mas pela elevação: a luz quanto mais sobe, mais se aproxima; a ideia quanto mais domina, mais se eleva. Senti-lo ausente é mais significativo que o saudar de perto. Deixemos, pois, o grande solitário da liberdade: não perturbemos em seu retiro o evangelista dos escravos”.

Como não ler um discurso magnífico como esse mais de uma vez? Como não mostrar um exemplo perfeito como esse em um livro que se propõe a ensinar o que há de melhor na oratória para o advogado?

Pelos descaminhos da vida, Max teve de deixar a editora e o livro não foi publicado na Itália. Todas as vezes em que conversamos, ele garante que ainda fará a publicação italiana. Sente-se orgulhoso de ter sido o pai dessa ideia.

Por outro lado, graças ao incentivo do então presidente da OAB SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, a Editora Saraiva se interessou em editá-lo no Brasil. É uma obra de grande sucesso. Tem a chancela da OAB SP e do Conselho Federal da OAB. Com a 2ª edição reformulada, ultrapassou os 100 mil exemplares vendidos e tem sido adotada nas mais importantes faculdades de Direito do país.

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