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Bandido também aprende a falar em público

Bandido também aprende a falar em público - Imagem: Reprodução | Freepik
Bandido também aprende a falar em público - Imagem: Reprodução | Freepik
Reinaldo Polito

por Reinaldo Polito

Publicado em 31/03/2024, às 05h43


Certa vez, a polícia do Rio de Janeiro prendeu um bandido que estava foragido havia bastante tempo. A notícia revelou que encontraram entre os seus pertences boa quantia em dinheiro, um revólver e - durma-se com um barulho desse – um exemplar do meu livro “Um jeito bom de falar bem”.

Nem preciso dizer que os amigos fizeram gozação comigo. E aí, Polito, dando aula pra bandidagem agora? Quer dizer que para ser 171 é preciso ler os seus livros? A brincadeira foi engraçada, mas deixou no ar um questionamento: se o ensino da oratória serve para o bem e para o mal, como fica a ética nessa história?

Ensinamento indistinto

Com os meus alunos não é diferente. Entre as mais de 100 mil pessoas que já treinei ao longo desses quase 50 anos como professor de Expressão Verbal, alguns deles foram vistos depois algemados no noticiário da televisão. E a pergunta é recorrente: você não se sente constrangido em saber que deu aulas para esse tipo de gente?

Naturalmente, ninguém chega na minha escola dizendo que é bandido, que vai aprender a falar bem para cometer crimes. Atendo a todos com o mesmo profissionalismo.

Os políticos

Outra indagação que me fazem é sobre a ideologia daqueles que me procuram. Como posso atender um político de esquerda e em seguida um de direita? A resposta é simples – ensino a falar em público. Meu objetivo não é o de convencer este ou aquele para determinada agremiação partidária.

Esta é uma época de verdadeira peregrinação. Com as eleições municipais batendo à nossa porta, a escola passa a receber um número grande de candidatos. De todos os partidos. Houve casos surpreendentes. Treinei políticos que disputavam a prefeitura da mesma cidade. Foram atendidos de forma distinta, como se o competidor não existisse.

O objetivo do treinamento é fazer com que transmitam a mensagem com segurança e desembaraço para conquistar os votos de que precisam para vencer as eleições. Nesse caso específico, todos sabiam que o opositor recebia as minhas orientações, com a certeza de que nenhum segredo seria revelado.

Jânio Quadros

Quem levanta importante reflexão a respeito desse tema, por irônico que possa parecer, é um político, Jânio Quadros:

“A palavra é extraordinariamente poderosa. Ela é dúctil. Ela pode ser boa e pode ser má. Ela pode ser suave e pode ser áspera. Ela pode ser franca e pode ser velada. Ela pode ser honesta e pode ser malévola. A palavra em si tem o fogo da inspiração divina. [...]

De sorte que as palavras podem ser temíveis, sim, e podem voltar-se contra quem as utilize. Elas são armas de dois gumes. Daí o cuidado que se deve ter no usá-la, esse dom divino não nos veio gratuitamente, ele nos veio com a razão, com a experiência, com o estudo.”

Santo Agostinho

Santo Agostinho, na obra “A doutrina cristã: Manual de exegese e formação cristã”, ajuda a elucidar essa discussão intrincada. Em suas considerações, faz obstinada defesa da importância do estudo da arte de falar em público:

“É um fato que, pela arte retórica, é possível persuadir o que é verdadeiro e o que é falso. Quem ousará, pois, afirmar que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? Seria assim? Então, esses oradores, que se esforçam para persuadir o erro, saberiam desde o proêmio conquistar o auditório e torná-lo benévolo e dócil, ao passo que os defensores da verdade não o conseguiriam?”

Depois de debater o tema, combatendo as opiniões que criticam o estudo e o aprendizado da oratória, o santo filósofo conclui com afirmação enfática:

Visto que a arte da palavra possui duplo efeito (o forte poder de persuadir seja para o mal, seja para o bem), por qual razão as pessoas honestas não poriam seu zelo a adquiri-la em vista de se engajar ao serviço da verdade? Os maus põem-nas ao serviço da injustiça e do erro, em vista de fazer triunfar causas perversas e mentirosas.

Não é, portanto, a oratória uma arte que possa ser considerada boa ou má, mas sim o uso que se faz dela. Como no mundo há mais pessoas boas que más, nada mais correto que a maioria se capacite para falar bem em público. Assim, teremos mais defensores das boas causas que aqueles que são mal-intencionados.

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