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COLUNA

A censura na imprensa brasileira

Censura. - Imagem: Pixbay
Censura. - Imagem: Pixbay
Reinaldo Polito

por Reinaldo Polito

Publicado em 23/10/2022, às 07h28


Você gosta de gelatina?

Um litro de suco de laranja (aproximadamente uma dúzia)

Meia xícara pequena de açúcar

Pouco mais de meia xícara pequena de amido de milho

E de literatura de bom nível?

Os Lusíadas (Canto Primeiro) Lyrics

As armas e os barões assinalados,

Que da ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca dantes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados,

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

Você sabia que na época brava da censura no Brasil era com essas mensagens que os jornais chegavam às mãos dos leitores todos os dias? Os mais jovens não têm ideia dos motivos que levavam os editores a recorrer às poesias e às receitas de culinária nas capas de suas edições diárias. Por que esse assunto volta à tona? A história é curiosa.

Nos últimos dias, muita gente ficou sobressaltada pela novidade ainda não vista pela população mais jovem: a censura – uma das mais violentas agressões à liberdade de expressão. Como nem todos vivenciaram essa condição de mordaça na história do nosso país, vamos relembrar parte dos acontecimentos.

O jornal “O Estado de São Paulo” foi um reduto de resistência à censura no Brasil. Embora o período mais conhecido da presença dos censores tenha sido de 1973 a 1975, o centenário órgão de imprensa sofreu o peso do “lápis vermelho” já em 1924, na Revolução Paulista. Em1932, logo após o término da Revolução Constitucionalista. E em 1937, durante o Estado Novo.

No período militar, os censores determinavam quais as informações que podiam ou não ser noticiadas. Além de indicarem os trechos que deveriam ser excluídos nas edições, para não ficar evidente que o jornal havia sido censurado, proibiam que os espaços eliminados ficassem em branco.

Por isso, os editores encontraram uma forma bastante criativa de preencher essas partes. No jornal “O Estado de São Paulo”, incluíam alguns versos de poesias de Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Castro Alves, entre outros. Os que fizeram mais sucesso, entretanto, foram os trechos da obra de Luís Vaz de Camões, “Os Lusíadas”. Já no “Jornal da Tarde”, que pertencia ao mesmo grupo jornalístico, deram preferência às receitas culinárias.

Houve um fato curioso. Alguns leitores desavisados, não perceberam a intenção de crítica à censura. Chegaram a elogiar a inciativa, mas reclamavam do fato de algumas orientações de doces e salgados não funcionarem na prática. E não podiam dar certo mesmo, pois como só preenchiam os locais onde os textos eram suprimidos, nem todas eram publicadas completas.

A pesquisadora Maria Aparecida de Aquino revela que dos 1.136 textos barrados no jornal, 655 foram substituídos com os versos da epopeia nacionalista portuguesa, escrita por Camões.

Quem viveu nesse período autoritário brasileiro, e sofreu o peso da supressão da liberdade de externar seu pensamento, provavelmente, supôs que jamais experimentaria a mesma sensação. Infelizmente, essa certeza se desmanchou nos últimos dias. A Jovem Pan está proibida de se manifestar a respeito de determinados temas. E, se algum jornalista desrespeita essa orientação, tem seu comentário imediatamente interrompido. De maneira geral, para evitar as penas impostas pelo descumprimento, a própria emissora faz a autocensura.

Aparentemente, o cerceamento da livre expressão das ideias é transitório. A própria ministra do STF, Cármen Lúcia, mostrou-se preocupada ao votar pela manutenção da decisão do ministro Benedito Gonçalves, que determinava a suspensão do documentário sobre o atentado contra Bolsonaro. Ressaltou que é contra qualquer tipo de censura. Alegou, entretanto, estar de acordo com a decisão “para que não haja comprometimento da lisura, da higidez, da segurança do processo eleitoral e dos direitos do eleitor’.

A exceção, todavia, é sempre temerária. Essas brechas temporárias podem se transformar em verdadeira “caixa de pandora”. Esse objeto mitológico legado pelos gregos, nos alerta para os riscos dessas experiências. Pandora, criada por Hefesto, a mando de Zeus, levava consigo uma caixa (chamada de caixa, embora fosse um jarro), com a determinação de jamais abri-la. Como não conseguiu resistir à tentação, quis saber o que havia em seu interior. Ao destapá-la, libertou terríveis males desconhecidos pela humanidade até aquele momento, como, guerras, mentiras, doenças, ódios. Ao tentar fechá-la novamente, conseguiu manter em seu interior apenas a esperança.

Esse é o perigo dessas experiências que prometem ser somente ocasionais. Depois de reveladas, quem poderá garantir que o que estava tão bem protegido volte a ser como era antes. Ainda que a decisão judicial seja mesmo por poucos dias, agora todos já sabem que em momentos excepcionais a iniciativa poderá se repetir.

Como disse Ulysses Guimarães: “A censura é a inimiga feroz da verdade. É o horror à inteligência, à pesquisa, ao debate, ao diálogo”. Siga pelo Instagram: @polito

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