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O encontro de titãs

O encontro de titãs - Imagem: Divulgação / Sputnik/Aleksey Druzhinin/Kremlin
O encontro de titãs - Imagem: Divulgação / Sputnik/Aleksey Druzhinin/Kremlin
Marcus Vinícius De Freitas

por Marcus Vinícius De Freitas

Publicado em 29/03/2023, às 08h42


Ao dirigir-se a Moscou na última semana, o presidente chinês, Xi Jinping, reencontrou-se com um velho amigo, o presidente Vladimir Putin, pela quadragésima vez. Na pauta de conversa, uma série de medidas para auxiliar a Rússia a navegar pelo momento da guerra na Ucrânia e a sobreviver em meio às inúmeras sanções impostas pelos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A questão do suprimento de armas por parte da Chinaà Rússia permanece em suspenso. A China avalia que pode perder mais do que ganhar se optar por esta estratégia, uma vez que confrontaria também o Ocidente e muitos de seus principais clientes.

O fato é que a postura da China tem sido consistente em sua política externa. O país asiático apresentou recentemente uma cartilha sobre os pontos principais de uma negociação de paz entre Kiev e Moscou, defendendo o direito internacional, a não intervenção, a preservação territorial, mas também a não interferência de terceiros países e a necessidade de abandonar-se a mentalidade de guerra fria que impera no Ocidente quanto ao processo de ascensão da China. Neste aspecto, a declaração chinesa afirma que: “A segurança de um país não deve ser buscada às custas de outros. A segurança de uma região não deve ser alcançada pelo fortalecimento ou expansão de blocos militares. Os legítimos interesses e preocupações de segurança de todos os países devem ser levados a sério e tratados adequadamente. Não existe solução simples para um problema complexo.” Com isto a mensagem chinesa é muito clara: não se trata, de fato de uma guerra da Rússia contra a Ucrânia mas da Rússía contra o expansionismo da OTAN.

Neste sentido, os chineses têm argumentado que esse expansionismo da OTAN pretende alcançar até mesmo a Ásia, com a construção de parcerias com a Coreia do Sul, por exemplo. A organização que era para ter encerrado atividades após o colapso da União Soviética pretende transformar-se numa aliança militar contra Rússia e China.

Beijing reconhece a legitimidade nas questões de segurança constantemente levantadas pela Rússia. Ainda assim, Beijing tem tido a capacidade de manter-se distante do conflito para preservar seu status de eventual mediadora do processo de paz. Neste sentido, o recente e bem-sucedido acordo entre sauditas e iranianos fortaleceu a diplomacia chinesa em seu posicionamento como potência mediadora.

A quem alegar que a China não tem sido imparcial, basta relembrar que até o momento o país tem-se mantido distante do conflito. Uma das razões – há que se recordar – é que a campanha militar russa sobre a Ucrânia rompeu dos um dos princípios mais queridos pela China: a não-intervenção nos assuntos domésticos de outro país. Conciliar este compromisso histórico ao princípio da não intervenção com a amizade com Moscoué uma linha complexa e difícil. A China também pode observar, no processo, que a atuação de Putin, de alguma forma, fortaleceu, ainda que temporariamente, uma resposta consolidada do Ocidente e revitalizou uma organização como a OTAN, que Emmanuel Macron afirmou morta cerebralmente.

A viagem de Xi Jinping a Moscou retratou a neutralidade chinesa no conflito e, de fato, uma atuação responsável na busca da paz em contraste com os Estados Unidos, belicosos e interessados em seguir alimentando o conflito, que se transformou, de fato, numa guerra por procuração entre China, Rússia e Estados Unidos, travada violentamente no território e com o sofrimento do povo ucraniano.  A China ainda reafirmou, baseada num antigo provérbio chinês – “antes de se preparar para melhorar o mundo, primeiro olhe ao redor de sua própria casa três vezes para administrar os assuntos globais – ser necessário que a casa esteja em ordem e os assuntos domésticos sejam bem administrados. Este recado foi dado a Washington num documento divulgado pelo governo chinês sobre o “Estado da Democracia nos Estados Unidos” demonstrando várias inconsistências, incoerências e falhas na governança norte-americana.

Apesar de o Ocidente observar com cinismo o encontro, a expectativa, particularmente do Sul Global, era enorme quanto aos seus resultados. O Sul Global tem sido muito prejudicado pela inflação e instabilidade geradas pela Guerra na Ucrânia. Neste sentido, Estados Unidos e Rússia contribuem igualmente para a manutenção do cenário de instabilidade. Para os Estados Unidos, em particular, a Guerra na Ucrânia representa a manutenção do status quo, renovados gastos militares globais e a preservação da hegemonia. O risco desta aposta é extremamente elevado, a ponto de muitos afirmarem que a vitória da Ucrânia pode representar para os Estados Unidos aquilo que a crise do Canal de Suez significou para o Império Britânico: o seu ocaso.

A mensagem de Moscou na semana passada, no entanto, foi muito clara: as cartas do tabuleiro global não são mais decididas exclusivamente em Washington, DC, Londres e Paris. Até porque o acúmulo de erros derivados de decisões equivocadas criou situações complicadíssimas como a Líbia, Síria e, a pior de todas, o Iraque, onde uma guerra injustificada, há 20 anos, baseada na falsa premissa de armas de destruição em massa jogaram um país já extremamente deteriorado por uma longa guerra contra o Irã num poço difícil de recuperação.

A unipolaridade representada pela Pax Americana terminou na semana passada. O mundo definitivamente voltou a ser bipolar novamente, diferentemente daquele de União Soviética e Estados Unidos, até porque a relação entre China e Estados Unidos é repleta de peculiaridades, interdependência e vínculos econômicos intensos. A sorte está lançada. O caminho será tortuoso.

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