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COLUNA

Ucrânia: uma guerra perdida

Volodymyr Zelenskyy - Imagem: Reprodução | CNN Brasil
Volodymyr Zelenskyy - Imagem: Reprodução | CNN Brasil
Marcus Vinícius De Freitas

por Marcus Vinícius De Freitas

Publicado em 27/03/2024, às 07h26


Não há dúvida de que Volodymyr Zelenskyy está mais preocupado do que nunca por ter acreditado que teria o apoio incondicional do Ocidente na resistência à ação ilegal de Moscou com a invasão do território ucraniano.Ao mesmo tempo, Zelenskyy deve arrepender-se de ter buscado maior aproximação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o que custou caríssimo ao seu país. Confiar que o Ocidente lhe garantiria proteção completa foi um erro estratégico de repercussão enorme, uma tragédia demográfica e até mesmo a consolidação de uma vasta perda territorial.

Passados dois anos da guerra, a sua banalização e queda de relevância na imprensa doméstica e internacional – e considerando a atual fase da humanidade em que se notícias se tornam velhas muito rapidamente – a Guerra na Ucrânia teve alguns impactos importantes.

Em primeiro lugar, a guerra levou a um empobrecimento coletivo do continente europeu. O aumento substancial no preço de energia, inflação em alta e falta de perspectiva de mudanças no cenário econômico, têm feito a Europa sofrer as consequências de terem acreditado que a Rússia seria um adversário fraco, que sanções funcionariam e que, rapidamente, com a ajuda oferecida pela OTAN, o continente se livraria rapidamente dos impactos negativos do conflito. As sanções, no entanto, não funcionaram: a economia da Rússia cresceu e o Ocidente descobriu a resiliência de Vladimir Putin no poder. Agora, reeleito, mesmo com o posterior ataque terrorista ocorrido em Moscou, Putin tem assistido a capacidade de governar de seus concorrentes diluindo. A estrutura econômica para sufocar a Rússia não funcionou e os países europeus, em razão da assimetria na dependência dos recursos produzidos pelo país euroasiático, têm sido muito prejudicados.

Em segundo lugar, a guerra trouxe às claras que os Estados Unidos já não possuem o mesmo peso global quanto à imposição de suas medidas e políticas. O Sul Global, basicamente, ignorou os apelos norte-americanos quanto à necessidade de apoiarem a ação da Ucrânia, pelo fato de estes haverem identificado que, na realidade, não se tratava efetivamente da defesa dos interesses da Ucrânia e da respectiva proteção territorial quanto à violação do direito internacional, mas sim de uma guerra por procuração triangulando Estados Unidos, Rússia e China. O Sul Global reconheceu também que estavam diante de um problema meramente europeu.

Em terceiro lugar, Putin conseguiu fazer com que o Velho Continente retrocedesse o relógio do tempo ao final da Segunda Guerra Mundial, reavivando a Guerra Fria, que por décadas fez a humanidade viver com a perspectiva de um confronto nuclear. Vimos, ao longo do processo a inclusão, na Organização do Atlântico Norte (OTAN), de Finlândia e Suécia, países historicamente neutros na Europa. O isolamento da Rússia pelos Estados Unidos e Europa, com a mudança do apelo global “contra a guerra” para uma movimentação sistemática “contra a Rússia” revelou rachaduras no sistema internacional e incrementou as incertezas globais.

A guerra da Ucrânia transformou-se, portanto, num divisor de águas que encerra o domínio hegemônico norte-americano. Vários erros estratégicos cometidos pelos Estados Unidos têm tornado irreversível sua trajetória de declínio, apesar da enorme resistência que tem apresentado. O dólar, que representava um instrumento eficaz nas sanções impostas a países que se lhes contrapunham, atualmente, corresponde a somente 40% das transações globais, concorrendo com o Euro e outras moedas, como o Renminbi, da China, que, paulatinamente, ampliam seu espaço econômico e comercial global de maneira irreversível. A utilização do dólar como instrumento bélico também tem seus dias contados. A maneira como as sanções foram utilizadas e a intensidade da imposição levantaram sinais vermelhos a todos os países que, por acaso, ambicionam uma voz mais ativa na ordem mundial.

No campo militar, a Rússia encontrou uma Ucrânia resiliente. Zelenskyy soube utilizar, de maneira brilhante, a mídia para construir inicialmente uma rede internacional de solidariedade ao país. Com isto garantiu, ainda que parcialmente, acesso a um arsenal militar sem precedentes. As expectativas de Putin de uma vitória rápida foram frustradas. No entanto, a máquina de guerra que a Rússia possui, os recursos econômicos e naturais, além da questão demográfica, ainda a favorecem substancialmente.

Os países da OTAN também enfrentam preocupações ao cederem equipamentos militares à Ucrânia. Em primeiro lugar, porque a linha entre apoio e engajamento da organização no conflito estão muito tênues. E, em segundo, porque a possibilidade de a Ucrânia perder a guerra existe e se amplia, e os equipamentos fornecidos poderão eventualmente cair nas mãos de Moscou. 

Passados mais de dois anos desta Guerra, o mundo ficou muito mais inseguro e a estabilidade pós-Guerra Fria parece exaurir-se cada vez mais. A economia global, tampouco, conseguirá recuperar-se tão rapidamente quanto se esperava após o fim da pandemia da Covid-19. E, para piorar, o conflito em Gaza coloca os Estados Unidos e Israel numa situação muito delicada perante a comunidade internacional, com uma autoridade moral cada vez mais dilapidada em ambos os casos.

O impacto desta guerra reverberará nos próximos anos e décadas. Como bem ensinou Eurípedes: “tudo é mudança; tudo cede o seu lugar e desaparece”. O mundo que conhecíamos desapareceu no último 24 de fevereiro de 2022. Definitivamente e para sempre.

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