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COLUNA

A tragédia de Gaza

Faixa de Gaza. - Imagem: Reprodução | X (Twitter) -  Mohammed ABED
Faixa de Gaza. - Imagem: Reprodução | X (Twitter) - Mohammed ABED
Marcus Vinícius De Freitas

por Marcus Vinícius De Freitas

Publicado em 03/04/2024, às 07h05


Benjamin Netanyahu tem conseguido um feito impressionante. Numa questão de meses, ele conseguiu retirar de Israel toda e qualquer autoridade moral sobre a questão do genocídio. O sofrido povo judeu, que enfrentou a maior e mais injusta perseguição na história, com o holocausto na Segunda Guerra Mundial, e que sempre foi um bastião da proteção dos direitos humanos, dos menos protegidos e perseguidos, tem, em razão da desastrada ação de Netanyahu, perdido a respeitabilidade internacional por causa da carnificina e tragédia em Gaza.

A carnificina do Hamas em 7 de outubro foi devastadora. Os mísseis constantemente lançados dos territórios palestinos em Israel também são imperdoáveis como prática do Hamas. No entanto, por mais justificada que fosse uma reação do Estado de Israel à ação perpetrada pelo Hamas, conforme previsto no Direito Internacional, já há muito tempo que a reação se tornou desproporcional. Netanyahu, sob a alegação de uma guerra ao Hamas, de fato, declarou guerra aos palestinos, buscando, por meio de uma ação de terra arrasada, destruir qualquer possibilidade da construção de um Estado Palestino, como preconizado desde 1945 pela comunidade internacional. Netanyahu, com isto, tem transformado Israel num pária internacional. E contra fatos não há argumentos: as imagens devastadoras da destruição em Gaza são claras, amplamente difundidas e irrefutáveis. A máquina de propaganda israelense pode tentar comprovar o contrário, mas não é possível. Milhares de pessoas já morreram e o impacto demográfico desta tragédia sobre a população palestina é inimaginável. 

O que Netanyahu está fazendo por Israel é uma tragédia. Essa tragédia tem sido, infelizmente, contraposta pelo aumento do antissemitismo – sempre latente – que temos observado globalmente. Pior resposta não poderia acontecer, porque se começou a associar as ações inconsequentes do Estado de Israel com sua população. E, para piorar, se o caso em julgamento na Corte Internacional de Justiça, que deverá demorar de três a cinco anos para uma decisão final, reconhecer a questão do genocídio, será uma tremenda reversão na autoridade moral que Israel tinha e exercia historicamente sobre a questão.

Os Estados Unidos de Joe Biden somente veem a situação deteriorar sua hegemonia global. A postura hipócrita que, de um lado, afirma oferecer ajuda humanitária a Gaza, por outro lado não reduziu, em absoluto, a venda de armamentos ao governo israelense. Além disso, não se sabe se Biden – o grande fiador de Israel – perdeu a capacidade de, efetivamente, influenciar Netanyahu. Maior prova disso é o fato de os Estados Unidos não conseguirem sequer forçar Netanyahu a abrir a fronteira para entrada de caminhões com ajuda humanitária.

A proposta da construção de um porto – com perspectiva de finalização em 3 meses – conforme anunciado no Discurso sobre o Estado da União revelou que Biden, de fato, tem pouco interesse em resolver o conflito de maneira imediata. A perspectiva americana é dúbia: se por um lado tem um interesse já há muito manifestado de afastar-se dos constantes conflitos no Oriente Médio, por outro lado não pode renunciar ao lucrativo mercado de petróleo que assegura a continuidade do poderio do dólar como reserva global de valor. Os petrodólares dão aos Estados Unidos um privilégio enorme de manutenção da sua posição econômica global.

Gaza se transformou numa ferida aberta da comunidade internacional, uma exposição clara dos limites da Organização das Nações Unidas, do Conselho de Segurança e do jogo político global entre as grandes potências. Ademais, transformou-se numa exposição clara dos interesses dos países ocidentais quanto à região e a preocupação reduzidíssima com relação a vidas humanas perdidas, além do desastre humanitário que se abateu sobre Gaza.

Até mesmo para a população israelense em Israel já tem ficado claro que Netanyahu parece mais interessado em conquistar território em áreas palestinas para atribuir aos grupos políticos mais radicais que o apoiam do que, efetivamente, recuperar os israelenses capturados no fatídico 7 de outubro. As ações de Netanyahu têm deslegitimado a resposta de Israel.

O grande desafio deste conflito é impedir que se transforme numa guerra de longo prazo, onde a exposição do risco nuclear incrementa substancialmente, além dos inúmeros custos sobre o preço do petróleo, gerando, eventualmente, uma instabilidade ainda maior, no contexto global, num mundo que ainda não se recuperou dos impactos da pandemia da COVID-19 e da Guerra na Ucrânia. Mas a maior tragédia de todas são as milhares de pessoas mortas e feridas neste conflito desnecessário, os escombros de uma cidade já miserável e a falta de perspectiva de paz duradoura.

Para aqueles grupos cristãos que justificam a ação do governo Netanyahu por sustentação bíblica, o fato é que Política Externa não se faz com a profecias, mas sim com o objetivo de paz e harmonia global. O que acontece em Gaza fere a doutrina do amor ao próximo, essência básica do Cristianismo.

A falta de um cessar-fogo no conflito arranha, profundamente, a imagem do Estado de Israel. Netanyahu já chegou ao limite daquilo que seria compreensível como reação. Triste será o dia se, de fato, o que ocorre em Gaza em for classificado como genocídio, porque será um embaraço irreversível para Israel e seu povo.

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