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A luz amarela acendeu

Por Marcus Vinícius de Freitas*

A luz amarela acendeu
A luz amarela acendeu

Redação Publicado em 22/12/2021, às 00h00 - Atualizado às 07h27


Por Marcus Vinícius de Freitas*

A luz amarela acendeu

Em meados da década de 2000, quando a Maré Rosa – governos de esquerda não comunistas – estava no auge, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela se encontravam sob domínio da esquerda. A América Latina se transformara no epicentro da esquerda no Sul Global, consolidando uma posição estratégica, porém com um discurso que pouco evoluíra depois queda do Muro de Berlim. A Maré Rosa consolidou, no entanto, a democracia na região e manteve a maior parte das economias abertas.  A reversão deste quadro ocorreu somente em razão da fadiga com os governos da ocasião. Os países foram infestados por escândalos de corrupção, má gestão e crescimento econômico pífio e a ausência de um modelo que se contrapusesse ao neoliberalismo imposto por Washington. Com isto, a direita ascendeu ao poder com um discurso ético, liberal e de valores. Acreditava-se que a ascensão destes grupos políticos poderia durar algumas décadas. Não é o que tem acontecido.

Se eleições em países estrangeiros servem como parâmetros para eventuais acontecimentos no Brasil, não há dúvida de que a evolução progressista nas Américas deveria acender um farol amarelo para os partidos à direita do espectro político. Da eleição de Lopez Obrador no México a Joe Biden nos Estados Unidos, Xiomara Castro (esposa do deposto Manuel Zelaya) em Honduras, Alberto Fernandez na Argentina, Pedro Castillo no Peru, e agora, Gabriel Boric no Chile, a Maré Rosa parece resiliente no hemisfério ocidental e revela a experiência frustrada das populações com os partidos à direita. No que teriam falhado esses partidos e por que o pêndulo político mudou tão rapidamente? Quatro são os fatores que poderíamos listar como contribuidores nesta rápida passagem dos partidos de direita pelo poder nos países latino-americanos.

Em primeiro lugar, naqueles países que tiveram regimes de exceção – como os regimes militares – a direita, já há muito chamuscada pela imagem negativa desse período complicado da história recente, tentou, em alguns casos, mitificar o período de exceção, sob a alegação da prevalência da Lei e Ordem na ocasião. O elogio constante a períodos e lideranças autoritárias proveu à esquerda o discurso perfeito contra os perigos inerentes à radicalização ou o retorno a um período de exceção. Os regimes autoritários na América Latina foram responsáveis pela década perdida de 1980 e, em que pese algumas melhorias de infraestrutura, a corrupção abundou e criou raízes profundas. Numa época revisionista como a atual – em que até estátuas de heróis do passado são retiradas ou altamente criticadas pela opinião pública – o saudosismo dessas máculas históricas não atrai a população em geral e, particularmente, a geração milenar.

O segundo aspecto foi a perspectiva equivocada da aplicação de medidas liberais num momento em que as sociedades demandam um papel mais ativo do Estado. A pandemia da Covid-19 evidenciou o fracasso dos Estados ocidentais em lidar com uma questão sanitária, com políticas equivocadas. Os Estados adotaram medidas irracionais na tentativa de controlar a pandemia, o que desgastou profundamente os governos. Além disso, medidas liberais aplicadas anteriormente diluíram a capacidade de entrega dos governos para atender às demandas sociais impostas pela Covid-19. Governos adotaram programas populistas de transferência de renda, com intuito eleitoral, porém sem equipar o Estado para enfrentar efetivamente as novas cepas. A impressão construída foi a de que, num momento de necessidade de solidariedade social, um Estado enfraquecido se teria tornado incapaz de atender às múltiplas demandas sociais.

Em terceiro lugar, com a ascensão da direita, surgiram grupos extremamente diversos e antropofágicos. O radicalismo irracional de alguns estimulou uma ojeriza popular quanto aos partidos à direita do espectro político. Para piorar, alguns destes grupos absorveram a dinâmica negacionista e ideológica do governo Trump quanto ao Coronavírus. Teses conspiratórias como a do Comuna-vírus, o Vírus Chinês, dentre outras, ensejaram o aparecimento de grupos retrógrados, ignorantes e alheios às realidades científicas. Numa generalização reputacional, a esquerda logrou carimbou ser de direita como apoiar teorias alienadas, terraplanistas, contrários à ciência e anti-vacina.

Por fim, não se logrou construir uma narrativa positiva a respeito dos grupos de direita no poder. Não basta criticar a esquerda sem apresentar, efetivamente, soluções inovadoras que melhorem o curso econômico, político e social. O distanciamento do poder por anos, ao invés de fortalecer e ter dado claramente uma visão sobre o futuro a ser perseguido, somente fez surgir uma série de medidas impensadas de ação, além de uma antropofagia entre os diversos grupos, com puristas cada vez mais radicais. As lideranças que deveriam inspirar passaram mais a aterrorizar e fazer duvidar sobre o futuro dos países.

Assim, duas três grandes economias da América do Sul – Argentina, Brasil e Chile – duas estarão nas mãos de líderes de esquerda em 2021. Tendências nem sempre se consolidam. Mas o cenário acende uma gigante luz amarela.

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*Marcus Vinícius De Freitas
Visiting Professor, China Foreign Affairs University
Senior Fellow, Policy Center for the New South
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