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Privacidade ou vigilância?

STF decide futuro de quebra de sigilo em pesquisas online

Privacidade ou vigilância? - Imagem: Reprodução/Fotos Públicas
Privacidade ou vigilância? - Imagem: Reprodução/Fotos Públicas
Agenor Duque

por Agenor Duque

Publicado em 18/09/2024, às 13h30


O Supremo Tribunal Federal (STF) poderá julgar, a partir desta quarta-feira (18), um recurso do Google que tenta impedir a quebra de sigilo de buscas de usuários na internet. A principal questão a ser analisada pelos ministros é se é possível autorizar a quebra de sigilo de um conjunto não identificado de pessoas sem que haja individualização de condutas ou justificativas específicas para tal medida. O Google argumenta que, se autorizada, essa prática poderá resultar em uma vigilância excessiva do Estado sobre os cidadãos, comprometendo o direito à privacidade.

A discussão é central no Recurso Extraordinário 1301250, que está relacionado à investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco, ocorrido em 2018 no Rio de Janeiro. Apesar de seu caráter específico, a decisão terá repercussão geral, o que significa que o entendimento do STF servirá de parâmetro para outros tribunais em casos semelhantes.

O Ministério Público do Rio de Janeiro havia solicitado ao Google uma lista de usuários que pesquisaram termos relacionados à vereadora Marielle Franco na semana que antecedeu sua morte, em 14 de março de 2018. A empresa, no entanto, recorreu à Suprema Corte após decisões de instâncias inferiores, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), determinarem o fornecimento das informações. O Google sustenta que a quebra de sigilo, nesses moldes, representa uma violação ao direito fundamental à privacidade e pode abrir precedentes perigosos para a vigilância em massa.

As decisões judiciais anteriores argumentam que, embora o direito à privacidade seja fundamental, ele não é absoluto e pode ser relativizado em casos excepcionais, como nas investigações criminais. No entanto, o Google e analistas jurídicos alertam para os riscos de a medida ser usada para vigilância indevida de cidadãos, o que, considerando a situação atual no Brasil, não seria grande novidade. A empresa enfatiza que a medida solicitada pelo Ministério Público cria um cenário em que buscas na internet podem se transformar em um mecanismo de monitoramento em massa, colocando em risco direitos fundamentais.

Especialistas consultados indicam que a decisão do STF pode representar uma ameaça à privacidade dos cidadãos, caso o tribunal entenda que o recurso do Google não é válido. Uma decisão favorável à quebra de sigilo sem individualização poderia abrir precedentes para que o Judiciário invadisse a privacidade de indivíduos em nome de investigações criminais, gerando um ambiente de vigilância constante. Para a advogada Vera Chemim, especialista em Direito Constitucional, essa possibilidade representa uma "imposição ditatorial" sobre empresas e cidadãos, que teriam seus dados expostos sem justificativas claras.

O advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, reforça a necessidade de individualizar as justificativas para a quebra de sigilo, uma vez que a legislação penal exige indícios concretos de condutas ilícitas. Para ele, permitir a quebra de sigilo sem essa individualização cria a possibilidade de abuso, em que autoridades podem utilizar o recurso para vigiar qualquer pessoa sem necessidade de justificativa, o que poderia incluir críticos políticos ou dissidentes.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), atuando como amicus curiae [amigo da corte] no processo, também se posicionou contra a medida, afirmando que ela infringe o direito fundamental à proteção de dados e cria um cenário de vigilância permanente, o que seria desproporcional às necessidades investigativas.

O julgamento é acompanhado de perto por juristas e defensores da privacidade, pois o que for decidido no caso do Google terá impacto sobre outras plataformas digitais e redes sociais. O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, alerta que o precedente pode gerar um cenário de "hipervigilantismo", onde um número incalculável de pessoas seria monitorado sem qualquer indício prévio de envolvimento com atividades criminosas.

O julgamento foi adiado após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes em setembro de 2023, quando a ex-ministra Rosa Weber, então relatora do caso, deu provimento ao recurso do Google. Weber defendeu que ordens judiciais de quebra de sigilo devem ser individualizadas e específicas, com base no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Contudo, analistas indicam que o ministro Moraes pode adotar uma postura contrária ao voto da ex-relatora, ampliando as possibilidades de quebra de sigilo em nome das investigações criminais; vindo de Moraes, não seria novidade alguma.

A decisão do STF tem o potencial de estabelecer um marco na relação entre privacidade e investigações criminais no Brasil. Se o tribunal permitir a quebra de sigilo de forma generalizada, sem a necessidade de individualização, isso poderá resultar em uma maior vigilância do Estado sobre as atividades online dos cidadãos. O desfecho desse julgamento poderá redefinir os limites do direito à privacidade em um contexto de investigações digitais, com implicações profundas para a sociedade e o setor de tecnologia.

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