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COLUNA

Liberdade cerceada: Como o STF está silenciando os representantes do povo

Na última terça-feira, 15 de outubro, Van Hattem discursou na Câmara para denunciar um inquérito sigiloso relatado pelo ministro Flávio Dino. - Imagem: Divulgação / Câmara dos Deputados
Na última terça-feira, 15 de outubro, Van Hattem discursou na Câmara para denunciar um inquérito sigiloso relatado pelo ministro Flávio Dino. - Imagem: Divulgação / Câmara dos Deputados
Agenor Duque

por Agenor Duque

Publicado em 18/10/2024, às 08h48


Em tempos não muito distantes, o Brasil contava com um instituto essencial à democracia: a imunidade parlamentar, prevista no artigo 53 da Constituição de 1988. Este artigo garantia que deputados e senadores seriam "invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". Essa proteção, tão fundamental para a liberdade de expressão no Parlamento, vem sendo gradualmente suprimida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como exemplifica o recente caso do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS).

Na última terça-feira, 15 de outubro, Van Hattem discursou na Câmara para denunciar um inquérito sigiloso relatado pelo ministro Flávio Dino. O deputado só soube que estava sendo investigado ao receber uma intimação da Polícia Federal, que apura um suposto crime contra a honra do delegado Fábio Shor, um dos principais responsáveis por inquéritos controversos supervisionados por Alexandre de Moraes desde 2019. Van Hattem havia chamado Shor de "abusador de autoridade" durante um discurso em 14 de agosto, criticando os métodos autoritários utilizados nas investigações de Moraes, incluindo as revelações feitas pelo jornalista Glenn Greenwald.

No relatório de Flávio Dino, o ministro sugeriu que as palavras de Van Hattem "podem ultrapassar as fronteiras da imunidade parlamentar". Entretanto, a Constituição é clara: não existem "fronteiras" quando se trata da imunidade parlamentar. Deputados e senadores são livres para expressar suas opiniões, por mais duras que sejam, e estão sujeitos apenas ao julgamento de seus pares em casos de quebra de decoro. Isso porque o constituinte de 1988 sabia que, para que o debate público ocorresse em toda sua plenitude, os parlamentares precisavam de liberdade total para falar, inclusive de formas que estariam vedadas a outros cidadãos.

Essa proteção à liberdade de expressão dentro do Parlamento é crucial para o funcionamento da democracia. Ao permitir que parlamentares possam ser processados por discursos feitos na tribuna, o STF ameaça diretamente essa liberdade. O episódio de Marcel van Hattem é um exemplo alarmante dessa tendência. Mesmo quando o Congresso revisou as regras de imunidade em 2001, ele manteve intacta a imunidade material, que protege palavras, opiniões e votos, reforçando sua importância para a democracia.

Além de violar a imunidade parlamentar, o STF vem aplicando, de forma equivocada, uma distinção entre atos ligados e não ligados ao mandato. Contudo, o discurso de Van Hattem, criticando o Supremo e suas investigações, claramente faz parte de sua função como representante do povo, discutindo questões de grande interesse público. Se o STF pode punir um parlamentar por esse tipo de crítica, qual será o futuro da liberdade de expressão no Brasil?

A perseguição a Van Hattem traz ecos sombrios do passado. Em 1968, o discurso de Márcio Moreira Alves na tribuna da Câmara desencadeou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que mergulhou o Brasil em um regime autoritário. Naquela ocasião, os generais exigiram a punição de Alves, mas a Câmara resistiu, defendendo a imunidade parlamentar. Hoje, o risco é que a imunidade parlamentar seja minada por um poder Judiciário cada vez mais intervencionista e que o Congresso, ao contrário de 1968, não ofereça resistência.

A situação atual é agravada pela postura da imprensa, que, em grande parte, aplaude ou faz críticas brandas ao comportamento do STF. Um exemplo é o jornal O Estado de S. Paulo, que, em editorial recente, reconheceu que está difícil defender o Supremo, mas ainda assim se posicionou contra iniciativas do Congresso para conter os abusos do tribunal, classificando-as como "vendeta". Essa incoerência foi bem apontada por Flavio Gordon, que criticou a postura dúbia do jornal em relação à corte.

Em abril de 2024, o ministro André Mendonça recusou um pedido de investigação contra o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) por um episódio semelhante ao de Van Hattem, reafirmando a "imunidade absoluta" nas dependências do Legislativo. Contudo, a decisão recente de Flávio Dino em abrir uma investigação contra Van Hattem abre um perigoso precedente, ameaçando a liberdade de expressão dos parlamentares. Se até a tribuna do Congresso não for mais um espaço seguro para o debate livre, podemos nos questionar até que ponto nossa democracia está sendo preservada.

A perseguição a críticos do STF, como Van Hattem, reflete um cenário preocupante, no qual o equilíbrio entre os Poderes está seriamente ameaçado. Enquanto o Senado permanece inerte, permitindo a continuidade dessas ações, a liberdade no Brasil segue em risco. A questão que permanece é: até quando o país tolerará essa situação, e o que será necessário para restaurar as garantias democráticas que estão sendo corroídas? 

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