por Adriana Galvão
Publicado em 28/05/2024, às 05h00
Maltratar animais está no rol das grandes maldades humanas, entre tantas que os avanços civilizatórios não conseguiram alcançar. Mesmo com progressos protetivos em termos legais, muita gente ainda se julga mais humanista à medida que não concede a um cão, por exemplo, um tostão sequer do seu amor. Amor seria algo a ser trocado entre seres humanos, jamais entre um homem e um bicho.
Não somos filósofos, tampouco nos apegaremos aqui a dogmas religiosos, mas não dissociamos o convívio com os animais daquilo que nos engrandece como seres humanos: o respeito, a generosidade, o cuidado.
À luz - ou às trevas - da morte do Joca, cão vitimado recentemente pelas normas de transporte de animais draconianas da empresa de aviação Gol, refletimos sobre o quanto uma pessoa pode se reconfortar, e até se curar, com a companhia de um cachorro, e o quanto um cachorro manifesta sua gratidão, de diversas formas, a seu companheiro homem, única e simplesmente por ser seu companheiro.
Como amplamente noticiado, Joca ficou uma hora e meia dentro de um caixote ao sol antes de ser embarcado no porão da aeronave errada, no mesmo caixote, onde permaneceu por oito horas sem água nem alimento. Falhas logísticas, desculpou-se a empresa. Se o leitor e a leitora têm ou tiveram um cão de estimação, sabem da profunda angústia que o isolamento provoca no animal, sabe que o bichinho vive momentos de terror quando se sente abandonado em um ambiente desconhecido. Joca sofreu bastante antes de morrer, conclui-se.
Organizações ligadas à proteção dos animais protestaram. Até o presidente da República manifestou-se em condolências. De todo modo, as formas de transporte de animais nos voos variam conforme a empresa em razão da falta de regras precisas da Anac, a Agência Nacional de Aviação Civil, e, portanto, não é recomendável “despachá-los” em viagens cujo destino pode ser a morte.
Mas, afinal, o que vem a ser um cão no seio de uma família? Quais os laços entre o cachorro e seu dono? Gente estudiosa debruça-se sobre o tema. Para a premiada filósofa e psicóloga belga Vinciane Despret, o encontro entre humanos e animais é transformador para ambas as espécies, engendrando novas identidades. Segundo Despret, o envolvimento entre indivíduos humanos e não-humanos é uma forma de “interagência” ou “agência compartilhada”, sendo que cada um deles só funciona totalmente quando junto com o outro, constituindo-se assim uma unidade de companheirismo, amizade e compreensão. Quem tem um pet sabe do que ela fala.
Paralelamente, ganha corpo nas ciências humanas o conceito de “família multiespécie”, em que cães e gatos possuem status de membros da família, algo bem diferente de “bichinhos de estimação” que servem como passatempo de crianças, por exemplo. A discussão é boa. Anda que haja resistência às “famílias multiespécies” na sociedade, trata-se de uma demanda que já chegou à Justiça: há contratos e litígios sobre guarda de animais em casos de divórcio.
Muitos fatores refletem no debate sobre animais serem ou não membros da família, fatores religiosos sobretudo. O próprio Papa Francisco, recentemente, criticou famílias que não têm filhos mas possuem animais domésticos. Não cremos que a intenção do Papa tenha sido condenar os bichos a uma condição de suprema inferioridade terrena, mesmo porque o nome que escolheu para exercer seu pontificado é o de um homem que se fez santo tratando os animais como irmãos: São Francisco de Assis.
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