por Adriana Galvão
Publicado em 18/06/2024, às 06h00
É nítida a percepção: vive-se sob uma onda anticivilizatória gigantesca, que tenta derrubar consensos que fizeram do Século XX um marco histórico de evolução humana, a despeito de suas tragédias. O Século XXI, em sua terceira década, revela-se como a era da reação ultraconservadora, uma época marcada por uma espécie de revolta reacionária. As motivações são várias, com destaque àquelas decorrentes de interpretações distorcidas de religiões, de negacionismo científico e de um irritante falso-moralismo. Os argumentos em defesa do Projeto de Lei 1.904/ 2024 não nos deixam mentir.
É fato notório que parcela do Parlamento brasileiro - infelizmente a maior -, caso seja aprovado o aberrante projeto, promoverá um retrocesso humanitário sem par na História, ao estabelecer o teto de 22 semanas para interrupção legal de gravidez, mesmo em casos de estupro, anencefalia fetal e risco de morte da gestante. Propõe-se, escandalosamente, alterar os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal para que a mulher que realizar aborto fora do limite citado seja condenada a penas que vão de seis a 20 anos de prisão. As penas para estupradores no Brasil vão de seis a 12 anos de prisão.
O debate sobre o aborto deveria, antes de tudo, dar-se no campo da saúde pública. Poderíamos fazer a sociedade evoluir em termos de conhecimento das implicações médicas do tema, além das sociais, é claro. Mas o que se vê é um amontoado de dogmas sendo lançados ao sabor das redes sociais e até das tribunas em que parlamentares abusam de sua imunidade.
Com boa dose de acerto, o Projeto de Lei 1.904 adquiriu a alcunha de “Estatuto do Estuprador”. Meninas que engravidam após serem estupradas seriam obrigadas a gestar no ventre a criança fruto da violência. E quantas são essas meninas? Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em sua última edição, de 2022, foram registrados no ano 74.930 estupros no Brasil, e seis em cada 10 vítimas tinham até 13 anos de idade. A cada ano 18 mil meninas com menos de 14 anos dão bebês à luz no país.
Os dogmáticos contrários ao aborto em nome da “preservação da vida”, que parecem não se preocupar com vida da mãe e que não raro são os mesmos que defendem a pena de morte, afirmam que tais gravidezes poderão ser interrompidas de modo legal até sua 22ª semana com a aprovação do PL. O argumento calca-se no desconhecimento. Obstetras da linha de frente do Sistema Único de Saúde já cansaram de dizer que a maioria dos estupros - cerca de 80% - atinge crianças e adolescentes que muitas vezes nem sabem o que é gravidez, meninas que não têm ciclo menstrual regular, não identificam os sintomas de carregar uma criança no ventre e só descobrem que estão grávidas quando a barriga já se mostra bem pronunciada.
Um aspecto importante nesta discussão: com ou sem a aprovação do PL 1.904, com ou sem dogmas religiosos, com ou sem aquele insuportável moralismo de fachada, as meninas filhas de pais endinheirados continuarão a fazer abordo em caríssimas clínicas clandestinas, mesmo que seus bebês não sejam fruto de estupro. A saúde pública que se lasque.
Já passou da hora do debate sobre o aborto dar-se em outro nível. Esta colunista, por exemplo, é uma advogada e professora que valoriza a vida acima de tudo, que não incentiva mulheres a abortarem - ao contrário, temos a maternidade como uma benção e a vida dos filhos como uma dádiva. O que defendemos é que a vida da mulher não seja ceifada por uma gestação cuja progressão lhe custe a saúde ou decorra de violência, tudo por conta de uma visão de mundo dogmática, retrógrada e desumana.
O momento requer menção a Simone Veil, advogada francesa falecida em 2017, que sobreviveu aos horrores do Holocausto e se tornou ícone da defesa dos direitos humanos. Veil, que não gostava de ser chamada de feminista, assim declarou, diante do Parlamento francês, em 1975: “O aborto é uma decisão dolorosa, sempre revestida de um drama individual. Nada, no entanto, justifica uma lei repressiva que coloca em risco milhões de vidas e a integridade reprodutiva das mulheres. A interrupção voluntária da gravidez, sob controle médico, revela-se a melhor maneira de preservar a integridade física e psicológica das mulheres, dimensão incontornável de toda sociedade democrática”.
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