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COLUNA

A cultura machista autoriza o estupro

A cultura machista autoriza o estupro - Imagem: Reprodução | Freepik
A cultura machista autoriza o estupro - Imagem: Reprodução | Freepik
Adriana Galvão

por Adriana Galvão

Publicado em 24/07/2024, às 06h00 - Atualizado às 08h18


No mês passado, denunciávamos neste espaço o horror humanitário que decorreria da aprovação, pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei 1.904 / 2024. Em favor da razão, da lógica e da civilidade, parece que resta devidamente engavetada a ideia de alterar os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal para que a mulher que realize aborto após 22 semanas de gravidez seja condenada a até 20 anos de prisão. O repúdio da sociedade à esdrúxula proposta, se não foi unânime, foi maciço.

Batizado de “Estatuto do Estuprador”, o PL acarretaria a mulheres que abortassem, mesmo que engravidadas quando estupradas, pena maior que a do próprio estuprador, que não passa de 12 anos de prisão. A nova edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, obra do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, confirma o quanto a sanha punitiva sobre a mulher que aborta ignora a realidade de violência a que ela é submetida no Brasil. E de modo crescente.

O estudo do FBSP, divulgado em 18 de julho último, revela que uma mulher foi estuprada a cada seis minutos no Brasil em 2023, levando-se em conta apenas os casos denunciados às autoridades policiais. O país assistiu, portanto, a 83.988 estupros no ano passado, 6,5% a mais que em 2022.

O recado mais direto aos defensores do malfadado projeto de lei, no entanto, é este: 61,6% das mulheres estupradas em 2023 tinham no máximo 13 anos de idade. Outra triste descoberta: 61,7% foram abusadas dentro de casa.

É urgente que se desvendem as razões que têm levado os lares a se tornarem, cada vez com mais contundência, palcos da violência contra a mulher. Para alguns, a pandemia tornou as relações familiares mais complicadas. Desculpem-me os aderentes a essa tese, mas não é natural que dificuldades de relacionamento descambem para a violência sexual.

Historicamente patriarcal e machista, o Brasil - e os lares brasileiros - parece elevar-se à condição de país misógino. Conforme o mesmo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, vimos em 2023 um aumento de 0,8% nos feminicídios, enquanto os casos de violência doméstica cresceram 9,8% e os de tentativa de homicídio contra mulheres, 9,2%.

Vê-se nos meios de comunicação, em especial nos programas de entretenimento, a presença cada vez mais marcante das mulheres como personalidades insubmissas, donas do seu destino, determinadas a fazer prevalecer a sua vontade. Os exemplos na mídia costumam influenciar a sociedade, jovens e crianças inspiram-se no que veem nas telas e nas telinhas. A imagem da mulher brasileira, hoje, não é a da dona de casa que vive para servir ao marido provedor. Mas essa imagem altiva, construída a duras penas, ainda não reflete a realidade da maioria dos lares - e nem se fale dos bares.

Para que estupros, abusos, assédios e vários tipos de importunação à mulher deixem de ser corriqueiros, além da reação feminina é preciso um profundo trabalho na mente masculina. O homem médio ainda se orgulha da virilidade como se esta fosse a maior das qualidades masculinas, e muitos colocam-na à prova mediante o horror de um estupro. Cumprem à risca o que estabelece a cultura machista. Não sabem que a covardia os torna homens moralmente minúsculos, além de criminosos.

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