Diário de São Paulo
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Maternidades trans: desafios e vitórias de quem conciliou o papel de mãe com a transição sexual

Tem mãe de tudo que é jeito: biológica, adotiva, de criação. Entre as diferentes maneiras de entender o maior laço de afeto humano, a maternidade transita

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Redação Publicado em 09/05/2021, às 00h00 - Atualizado às 09h54


Sara York foi pai antes de se entender mãe. Cristiano Henrique foi mãe antes de se ver pai. Neste Dia das Mães, G1 conta histórias de pessoas trans que se compreenderam na maternidade ou na paternidade, diante da luta por respeito.

Tem mãe de tudo que é jeito: biológica, adotiva, de criação. Entre as diferentes maneiras de entender o maior laço de afeto humano, a maternidade transita junto do sexo da figura da mãe?

Neste Dia das Mães, o G1 apresenta as histórias de duas pessoas trans, um em São Paulo e outra no Rio de Janeiro, que têm experiências diferentes na maternidade. Experiências de alguma forma antagônicas, que são só uma amostra de complexidades que a transição de gênero permite: Sara foi pai antes de se entender mãe; Cristiano foi mãe antes de se ver pai.

Os personagens compartilharam suas trajetórias com os filhos, o medo e o preconceito vividos com a maternidade/paternidade trans no Brasil – país onde foram registrados 175 assassinatos de pessoas transexuais em 2020, o que equivale a uma morte a cada 2 dias. Também falaram do significado de um dia das mães para si. Veja o vídeo acima.

Cristiano Henrique e Sara York tiveram experiências distintas conciliando maternidade e mudança de gênero — Foto: Fábio Tito/G1; Marcos Serra Lima/G1

Cristiano Henrique e Sara York tiveram experiências distintas conciliando maternidade e mudança de gênero — Foto: Fábio Tito/G1; Marcos Serra Lima/G1

‘Quem eu sou? O que eu sou?’

“De repente, eu me vi numa situação grávido, sem saber o que fazer, sem saber para quem recorrer, o que falar, como agir. A minha mente de menino dizia: meninos não engravidam”, conta o barbeiro Cristiano Henrique, de 37 anos. Ele nasceu com sexo feminino e se reconheceu masculino desde cedo.

Nascido e criado na Zona Leste de São Paulo, Cristiano tem uma filha biológica, que gerou antes de sua transição, e um neto –que cria como filho.

“Me reconheci um menino transexual aos 3 anos de idade. Minha mãe não soube lidar com isso, me levou a alguns médicos que falaram que era normal, que eu era muito criança e que depois mudaria. Não mudei”, diz Cristiano na Men’s Club Barber, barbearia que montou há 7 anos na região de Itaquera.

Mas ele tentou. Adolescente, ficou com garotos em busca de “ser normal”. Perdeu a virgindade, odiou, e mesmo assim insistiu, porque ouviu de amigas que “melhorava”. Na segunda tentativa, engravidou. Com a gravidez aos 15 anos, a transição foi deixada para depois; ele decidiu assumir a responsabilidade de ser mãe e não achava possível conciliar as duas coisas.

Cristiano Henrique, de 37 anos, posa em sua barbearia na região de Itaquera, Zona Leste de São Paulo — Foto: Fábio Tito/G1

Cristiano Henrique, de 37 anos, posa em sua barbearia na região de Itaquera, Zona Leste de São Paulo — Foto: Fábio Tito/G1

A gravidez só foi anunciada para a família no quinto mês. Gabriela foi o nome escolhido para a filha. Segundo Cristiano, o amparo da mãe e do pai fez a diferença, já que ele seria mãe solo e teria que abandonar a tão sonhada carreira no futebol.

“A outra parte se eximiu. Quando eu assumi essa responsabilidade de mãe e pai de todas as formas, eu ainda jogava bola. Até o nascimento da minha filha eu estava vinculado ao clube em que eu jogava, mas assim que ela nasceu, tudo acabou, meu contrato acabou quase que instantaneamente”, conta Cristiano.

Com a pausa no futebol e na transição, Cristiano saiu da casa dos pais aos 18 anos e se casou com a namorada, Cynthia Souza. “Eu nunca considerei o meu relacionamento como lésbico, porque nunca me vi como uma menina lésbica, me via como um menino no corpo de uma menina. Desde que a gente se conheceu eu sempre pontuava muito, não tinha uma cobrança de se portar, se vestir como uma mulher”, explica o barbeiro.

A saída da casa dos pais não foi conturbada, mas Cristiano precisou “discutir a relação” com a família. “Minha mãe entendeu melhor a situação quando eu mostrei melhor pra ela que o meu relacionamento era tão normal, tão amoroso, tão afetivo quanto o que ela tinha com o meu pai”, conta Cristiano.

Cristiano e Cynthia, casados há 18 anos, posam em casa com o pequeno Miguel, de 2 anos — Foto: Fábio Tito/G1

Cristiano e Cynthia, casados há 18 anos, posam em casa com o pequeno Miguel, de 2 anos — Foto: Fábio Tito/G1

Aos 32 anos, Cristiano decidiu fazer a transição e se assumir como homem trans. O estopim foi perceber que estava infeliz e, consequentemente, estava fazendo outras pessoas infelizes.

“Eu tinha passado por milhões de situações em que me pegava pensando: Quem eu sou? O que eu sou? As pessoas me confundiam com um menino, isso sempre aconteceu comigo quando criança, mas não tinha um impacto tão grande que começou a ter. De repente eu comecei a perceber que eu estava vivendo uma fantasia”, relembra, emocionado.

Ele também recorda que conversar sobre sua transexualidade com a filha Gabriela, na época com cerca de 12 anos, foi libertador. Para Cristiano, é como se a filha já soubesse, só não tinha maturidade o suficiente.

“Ela já sentia alguma coisa, que eu não era aquela mãe que via nas outras famílias. Ela não tinha isso, então para ela também foi uma libertação, as pessoas param de questionar, rotular. Foi a fase mais profunda da minha vida”, conta o barbeiro.

No antebraço, Cristiano traz tatuado o nome do 'neto-filho', Miguel — Foto: Fábio Tito/G1

No antebraço, Cristiano traz tatuado o nome do ‘neto-filho’, Miguel — Foto: Fábio Tito/G1

Nos últimos anos a relação entre Cristiano e a filha se complicou, e hoje há pouco contato entre os dois. Depois que Gabriela engravidou, também bem jovem, Cristiano entrou com um pedido pela guarda do neto; Gabriela concordou. Hoje, Cristiano cria como filho o jovem Miguel, de 2 anos, junto de Cynthia, com quem segue casado há 18 anos.

“Eu tive mais uma chance de construir um ser humaninho. Só que agora numa nova versão de mim. Pra quem eu posso ser quem eu sempre fui. Hoje eu só sou o pai do Miguel, ele me chama de pai.”

15 anos longe do filho

Assumir a responsabilidade de mãe e pai de um filho não foi a realidade de Sara Wagner York, educadora e pesquisadora de 46 anos; pelo contrário: ela viu esses papéis serem tirados de si. Após tentar ter um relacionamento com uma jovem na igreja, em busca de uma possível “cura gay”, a namorada acabou engravidando e elas tiveram o filho, Victor. Sara já se enxergava como mulher na época, e a família da mãe da criança não soube lidar com a situação.

“Eu não conseguia achar uma outra palavra pra relação entre meu filho e o que eu sou. Eu chamei aquilo de ser pai, mesmo sabendo que aquela relação estava mais ligada a uma afetividade materna do que qualquer coisa. (…) Eu convivo com o Victor até por volta dos 5 anos. E chega um dia, ao visitar a casa onde a mãe estava, eu já não o encontro mais. Eles tinham ido pra outro lugar, e a pessoa que me atende não me diz onde eles estão. Me dá um choque de saber que eu não ia mais ver meu filho”, recorda Sara.

Sara Wagner York, professora e pesquisadora, é pai e avó — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Sara Wagner York, professora e pesquisadora, é pai e avó — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Depois de anos em busca do filho, Sara viveu seus piores dias quando se viu usuária de drogas e em situação de rua. “Eu tive um sentimento de derrota enquanto mulher, pai, mãe, enquanto qualquer coisa que me desse a sensação de parentalidade com a perda do meu filho”, conta Sara.

Ela decidiu então enterrar aquele passado e se reerguer. Anos depois, estava trabalhando como cabeleireira na Inglaterra, onde conquistou renome. Depois que uma foto com Elza Soares viralizou, Sara recebeu uma mensagem pedindo que ela entrasse em contato com o Brasil.

“Falei: quem tá falando? E a pessoa do outro lado fala: ‘Sou eu, pai. Bença’. (…) E eu acho que aquele momento foi um momento em que eu renasci. Eu pensei… Acho que agora eu pari”, afirma, entre lágrimas e risos.

Sara York voltou ao Brasil para reencontrar o filho que passou anos procurando — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Sara York voltou ao Brasil para reencontrar o filho que passou anos procurando — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Um ano depois, o reencontro emocionante no Brasil também trouxe consigo uma lição amarga. Foi quando o filho chegou ao Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, vindo de Goiânia, onde mora.

“Eu corri pra ele, ele vem, e a gente se abraça… E ali o mundo voltou. Porque era como se eu estivesse pegando aquele bebê de novo. Foram 5 segundos que o mundo parou. E durante esses 5 segundos que pareceram eternos, uma mensagem traz a gente pra realidade e vai ser a definidora da minha vida. De novo. Dois homens que estavam perto disseram: ‘Olha o que os viados estão fazendo no mundo’. Ali, um abraço de um pai, uma mãe, uma avó, um abraço dessa mulher com um filho, com essa relação afetiva retirada de modo violento, e mais uma vez eu sinto essa violência”, define a pesquisadora.

Hoje, Sara vive em São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro, e o filho em Goiânia, Goiás. “É uma distância razoável. A gente tem tentado nesse período pandêmico ter uma relação aligeirada pelo modo como a vida tem se dado, mas com alguma profundidade afetiva”, diz Sara. Muito ativa nas redes sociais, às vezes posta prints das conversas por vídeo apaixonadas com o filho e o neto, Nicholas.

Sara se define como parte de uma maternidade ainda invisível no Brasil — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Sara se define como parte de uma maternidade ainda invisível no Brasil — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Em conversa com a reportagem, Sara confidenciou que um grande sonho seu é poder passear de mãos dadas com o neto de 5 anos sem atrair olhares suspeitos das pessoas ao redor.

“Se eu digo ‘avó’. Todo mundo tem uma imagem mental de avó. E eu sou essa avó. E eu gosto de ser essa avó. E eu quero ser essa avó. Será que esse direito é um direito social de todo sujeito? Será que eu posso ser também?”, questiona.

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Fonte: G1 – Globo.

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