Como nos ensinou Rudolf Von Ihering, em sua obra A Luta Pelo Direito, “o direito não é uma pura teoria, mas uma força viva” .
Redação Publicado em 12/05/2022, às 00h00 - Atualizado às 17h02
Como nos ensinou Rudolf Von Ihering, em sua obra A Luta Pelo Direito, “o direito não é uma pura teoria, mas uma força viva” [1].
Isso nos remete à ideia de que o ordenamento jurídico deve estar em constante transformação, disciplinando situações novas de acordo com os avanços sociais, tecnológicos, culturais e científicos.
A questão das células-tronco embrionárias é foco de intenso debate há anos, nas mais diversas esferas da sociedade, e, como era de se esperar, tornou-se relevante também para os operadores do direito.
Isso porque pessoas acometidas por graves enfermidades veem nas células-tronco uma esperança de cura ou, ao menos, de melhora na qualidade de vida.
Assim, diante dos inegáveis avanços na área da biotecnologia, o direito deve ser mais um fator de fomento e estímulo, disciplinando a matéria de forma ampla e atual, e não servindo como obstáculo intransponível fundado em dogmas morais e religiosos.
O Brasil, um país de extrema relevância no cenário internacional, não pode mostrar-se impassível à biotecnologia, mas despontar como referência na área, disciplinando o denominado Biodireito por meio de normas contemporâneas e sensíveis aos atuais e constantes avanços científicos.
A primeira legislação sobre a matéria foi a Lei 8.974 de janeiro de 1995, a qual estabelecia normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados.
Referida norma criou, no âmbito do Ministério da Ciência e da Tecnologia, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, cuja finalidade era prestar apoio técnico consultivo e assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança, relativas aos organismos geneticamente modificados.
Tinha, ainda, a função de assessorar o estabelecimento de normas técnicas de segurança referente à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvessem a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados (art. 1º da mencionada Lei).
Essa lei também trazia a definição do conceito de organismo geneticamente modificado (OGM) e de engenharia genética.
Todavia, apesar dos inegáveis avanços, tal diploma vedava a manipulação genética de células humanas (art. 8º, inciso II), bem como a produção, armazenamento ou manipulação de embriões destinados a servir como material biológico disponível (art. 8º, inciso IV).
Outra regulação significativa para o setor foi a Lei 9.434 de fevereiro de 1997, a qual dispunha sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante.
De acordo com seu art. 9º (com redação modificada pela Lei 10.211/2001), ficou permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau ou a qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.
Em março de 2005, foi editada a Lei 11.105 (Lei de Biossegurança), que ab-rogou a Lei 8.974/95, ou seja, revogou todas as disposições da lei anterior.
Essa nova lei, além de regulamentar alguns incisos do art. 225 da Constituição Federal, também estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades envolvendo organismos geneticamente modificados (OGM) e seus derivados, criando, ainda, o Conselho Nacional de Biossegurança (reestruturação da antiga Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).
A mencionada norma, de acordo com o seu art. 1º, tem como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área da biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida, à saúde humana, animal e vegetal e a observância ao princípio da precaução na proteção do meio ambiente.
De forma mais abrangente, dita lei, em seu artigo 3º, inciso XI, passou a conceituar as células-tronco embrionárias como: “células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um organismo”.
No art. 5º, também passou a permitir, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que inviáveis ou congelados há mais de três anos.
A Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05) é o atual diploma que disciplina a questão envolvendo a utilização das células-tronco.
De todo modo, o Código Civil também traz algumas disposições relevantes para a questão, em especial, a que envolve a filiação.
Segundo o art. 1.597, incisos III e IV, daquele Códex, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos advindos de fecundação artificial homóloga (material genético de ambos os cônjuges), mesmo que falecido o marido, bem como aqueles advindos, a qualquer tempo, de embriões excedentários decorrentes de concepção artificial homóloga.
Esse sistema, obviamente, se atém à Constituição Federal, regência maior e paradigma de todo o ordenamento jurídico, a conferir proteção à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e à vida (artigo 5º, caput).
Aliás, a Lei Suprema impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético (art. 225, §1º, inciso II). Já o controle do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, para a qualidade de vida e para o meio ambiente, vem tratado no inciso V do §1º, do artigo 225, da Carta Magna.
Após anos de vigência da Lei 11.105/2005, as mesmas preocupações e questionamentos suscitados à época ainda se mostram presentes por aqueles que defendem ou repudiam o uso das células-tronco.
Com efeito, como fruto de sua época, a Lei de Biossegurança não contemplou métodos e técnicas descobertos pela ciência após sua edição.
O art. 5º, caput, da Lei 11.105/2005 apenas menciona a utilização das células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, as quais, até o ano de 2006, podiam ser embrionárias ou adultas.
As células-tronco embrionárias sempre foram palco de intenso debate no meio social, acadêmico, religioso e político, em virtude da sua origem e das possíveis implicações quanto à ideia do momento exato em que se dá a concepção da vida.
Por conta disso, evidentes os grandes obstáculos para a utilização de embriões para a obtenção das células-tronco, o que dificulta seu emprego e o avanço de novas pesquisas e estudos.
Já as células-tronco adultas podem ser obtidas de diferentes tecidos, principalmente, da medula óssea e do cordão umbilical.
Apesar de superarem os questionamentos éticos, as células-tronco adultas não se mostram tão versáteis quanto às embrionárias, visto que não possuem a mesma capacidade de se transformar em qualquer tipo de células do corpo humano (216 tipos), o que limita sua utilização e diminui seu potencial. E mais, o transplante dessas células de um paciente para outro pode levar a problemas de histocompatibilidade do sistema imune.
Diante desse cenário, a partir de 2006, criou-se uma nova técnica que, em princípio, encerra os problemas acima destacados. Trata-se das denominadas células-tronco induzidas ou pluripotentes, criadas a partir de tecidos totalmente diferenciados, como as células da pele.
Segundo informações obtidas no site do Instituto de Pesquisa de Células-tronco – IPCT, “…as primeiras células-tronco humanas induzidas foram produzidas em 2007, a partir da pele. E tem sido daí que são retiradas as células para reprogramação, mesmo que teoricamente, qualquer tecido do corpo possa ser reprogramado. O processo de reprogramação se dá através da inserção de um vírus contendo 4 genes. Estes genes se inserem no DNA da célula adulta, como, por exemplo, uma da pele, e reprogramam o código genético. Com este novo programa, as células voltam ao estágio de uma célula-tronco embrionária e possuem características de autorrenovação e capacidade de se diferenciarem em qualquer tecido” [1]. Esse método ficou conhecido como “reprogramação celular”.
Com esta nova técnica, surgiu a possibilidade de obtenção de células-tronco embrionárias sem a necessidade de utilização de embriões, o que torna superada toda a celeuma envolvendo questões ético-religiosas acerca do direito à vida e o momento de sua concepção. Este novo procedimento afasta propostas retrogradas como a prevista no Projeto de Lei nº 5.153 de 2020, o qual pretende tornar crime a utilização de células-tronco obtidas a partir de embrião humano [2].
Nesse sentido, relembrando a ideia de que o direito é uma “força viva”, inegável a necessidade de atualização da legislação em vigor, em especial, da Lei de Biossegurança, a qual é totalmente silente quanto às células-tronco induzidas, criadas a partir da reprogramação celular, o que é visto por muitos especialistas como o futuro da medicina regenerativa.
Ora, como a saúde é direito de todos e dever do Estado, segundo preceitua o art. 196 da Constituição Federal, o último não pode ser omisso quanto à inclusão, no ordenamento, de novas técnicas provenientes da biotecnologia, como no caso da reprogramação celular para a criação de células-tronco induzidas, sob pena de deixar de conferir maior segurança jurídica para seu desenvolvimento em território nacional e, consequentemente, a obtenção de mais investimentos financeiros. Frise-se que o desenvolvimento científico não importa, necessariamente, na desconstrução de dogmas ou de valores ético-religiosos.
Por isso que ao Congresso cabe voltar os olhos para isso, tendo em vista a evolução da saúde humana.
[1] Disponível em: http://celulastroncors.org.br/celulas-tronco-2/. Acessado em 03/05/2022, às 17h03m.
[2] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145410. Acessado em 03/05/2022, às
17h41m.
Ivan Sartori é formado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, ingressou na magistratura como juiz, aos 23 anos. Foi promovido, por merecimento, para o Tribunal de Alçada Criminal e a desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, considerado o maior tribunal do mundo, onde foi presidente durante 2012 e 2013, tornando-se o presidente mais jovem da história do tribunal.
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