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Os três erros do Ocidente

Por Marcus Vinicius de Freitas*

Os três erros do Ocidente
Os três erros do Ocidente

Redação Publicado em 06/04/2022, às 00h00 - Atualizado às 07h47


Por Marcus Vinicius de Freitas*

Os três erros do Ocidente

Em que pese a tragédia que ocorre na Ucrânia ser lamentável, ela já produziu alteração profunda no cenário global, inclusive alterando a estrutura do poder mundial. Se passamos por um período bipolar entre 1945 e 1991, depois unipolar de 1991 a 2001, a realidade e que o mundo mudou e a guerra da Ucrânia, aliada à pandemia da Covid-19, aceleraram um processo que Donald Trump tentou retardar e os desacertos de Biden aceleraram: já não há mais a preponderância dos Estados Unidos no sistema global.

A situação atual não é fruto do presente, porém de um acumulado de equívocos e desacertos perpetrados pelo Ocidente nas últimas três décadas, a partir da Queda do Muro de Berlim, em 1989, quando se acreditou que o processo de liberalismo e democracia, semelhantes ao modelo desenvolvido no Ocidente, se consolidaria mundialmente e, como consequência, haveria um alinhamento quase automático dos países aos Estados Unidos. No entanto, houve três fatos que descarrilaram as perspectivas do Leste Europeu, com implicação direta na situação ucraniana.

Em primeiro lugar, a queda do comunismo soviético foi cercada de promessas de uma melhoria substancial na qualidade de vida da população. Afinal, o regime capitalista tinha sido responsável por um incremento significativo na qualidade de vida do Ocidente. A esperança dos países do Leste Europeu era que, uma vez implementado o novo regime econômico, com reflexo no político, a situação doméstica melhoraria e haveria um salto relevante. No entanto, os recursos não vieram exatamente como esperado e a reorganização interna dos países sacrificou demasiadamente as populações. Naqueles que conseguiram tornar-se membros da União Europeia houve uma relativa melhora na qualidade de vida. No entanto, os inúmeros requisitos de afiliação alienaram a alguns países – inclusive a Ucrânia. Além disso, a crescente deterioração da sociedade ocidental e de seu tecido social criaram uma forte resistência à incorporação de muitos destes valores, que estavam em choque com aquilo que aqueles países esperavam. Contrariamente às expectativas econômicas, no entanto, a aliança militar avançou muito mais rapidamente que a entrada na União Europeia, contrariando as restrições de um Kremlin enfraquecido pela situação caótica interna.

Em segundo lugar, a invasão do Iraque sob o falso pretexto das armas de destruição em massa – jamais identificadas ou encontradas – evidenciou o quanto os Estados Unidos estariam dispostos a abusar de sua posição hegemônica para consolidar seu poderio global. A farsa norte-americana – que, por sorte, não contou com o apoio da comunidade internacional – ampliou a percepção de que determinados países – portadores de armas nucleares – seriam mais iguais que os outros, permitindo-se-lhes ações que, em princípio, não deveriam ocorrer mais desde 1945. George W. Bush também criou a famigerada Doutrina Bush, que praticamente dava aos Estados Unidos legitimidade para ataque preventivo contra aqueles que se lhe opusessem. Tal conceito sabotou os princípios anteriores das Doutrinas Truman (contenção) , Reagan (apoio aos combatentes da liberdade), e Clinton (favorável ao multilateralismo). A ação equivocada no Iraque levou, inclusive, à troca do regime com a queda de Saddam Hussein. Como reação, Coreia do Norte e Irã aceleraram seus programas nucleares e, no caso russo, a invasão, num futuro próximo, de Geórgia e Crimeia. A recente frase de Biden sobre a troca de regime em Moscou acendeu vários alertas nos países europeus e pelo mundo.

Finalmente, as linhas vermelhas, difundidas pelo Ocidente geraram a impressão de que o Ocidente jamais atua por princípios, mas sim por meros interesses. A Barack Obama se devem duas situações cujos impactos se sentem até hoje: a condescendência ao tratar da Rússia como potência meramente regional, menosprezando seu potencial bélico e importância territorial e produtiva, e a famosa linha vermelha de prevenção à utilização de armas químicas por Bashar al-Assad, na Síria – e que foram, de fato, utilizadas, segundo consta – sem qualquer reação do Ocidente. Estas linhas vermelhas não cumpridas preocupam particularmente os países da OTAN, que podem ver-se numa situação complicada se houver ação da Rússia em seus territórios. Por mais que os Estados Unidos afirmem a unidade da aliança, a realidade, no entanto, é bem distinta.

É importante enfatizar que nada justifica uma guerra que não seja a legitima defesa. No entanto, para compreender esta nova ordem internacional que se vem desenhando, é importante entender que se trata de um processo de quitação de pendências anteriores e de evolução, que vem acontecendo já há algum tempo, e que, diante dos últimos eventos da ordem internacional, tornaram-se uma realidade.

Neste novo período de turbulência, portanto, é fundamental realinhar o prumo da Política Externa para uma ordem global que ainda não temos uma ideia precisa de como se configurará. A Guerra da Ucrânia altera profundamente o quadro mundial. Mas ela também precisa acabar o mais rápido possível. Como bem disse Benjamin Franklin, “nunca houve uma guerra boa nem uma paz ruim”. O mundo precisa de paz.

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Marcus Vinicius De Freitas
Professor Visitante, China Foreign Affairs University
Senior Fellow, Policy Center for the New South
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