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Mulher vive com doença que a faz arrancar os cabelos há 20 anos: ‘É igual uma droga’

Quando coloco a mão na cabeça tenho que pensar: 'Não posso fazer isso'. É muita força de vontade. Tem que ter controle porque é igual a uma droga."

Mulher vive com doença que a faz arrancar os cabelos há 20 anos: ‘É igual uma droga’
Mulher vive com doença que a faz arrancar os cabelos há 20 anos: ‘É igual uma droga’

Redação Publicado em 05/10/2017, às 00h00 - Atualizado às 07h55


Quando coloco a mão na cabeça tenho que pensar: ‘Não posso fazer isso’. É muita força de vontade. Tem que ter controle porque é igual a uma droga.”

O desabafo revela o drama de uma moradora de São Roque (SP) que convive há 20 anos com uma doença que a faz arrancar os próprios cabelos chamada tricotilomania – ato recorrente de arrancar os cabelos ou outros pelos do corpo.

Mãe de dois filhos e divorciada, Ana Carolina Collini Botti, de 31 anos, contou ao G1 que ouviu pela primeira vez sobre a tricotilomania em uma reportagem na televisão. Ela procurou ajuda e há cerca de cinco anos faz acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da cidade.

“Arranco [o cabelo] com a mão. Quando está muito cotoquinho, até com pinça eu arranco. Quando a crise volta, eu raspo na zero. As pessoas olham com muito preconceito. Olham e acham que a gente é louca ou que faz isso para chamar atenção”, desabafa.

Ana Carolina lembra que teve as piores crises na época em que se divorciou do marido e que era impossível ficar sem arrancar os fios e roer as unhas. Ela compara o comportamento ao de quem é dependente químico.

“Foi o pior momento, foi bem intenso, não conseguia parar. Olhar para o chão e ver um monte, varrer a casa e o cabelo indo embora. Cheguei a ter ferida na cabeça a ponto de sangrar. É incontrolável, é igual uma droga mesmo se você é viciado”, conta.

Sinais na infância

Apesar de ter iniciado o tratamento já na vida adulta, Ana Carolina diz que começou a arrancar os cabelos muito cedo, aos 11 anos, quando os fios longos aos poucos foram dando lugar às falhas no couro cabeludo.

Ela relata que a família demorou a entender o que aquilo significava e que não era uma fase de criança.

“Para quem tem a tricotilomania é difícil porque você não imagina que outras pessoas têm. Desde que comecei, eu passo em psicólogo e psiquiatra, mas é difícil porque pouca gente sabe e não tem muita informação sobre a doença. Sofro de ansiedade e tive depressão na adolescência”, conta.

Moradora de São Roque convive há 20 anos com a tricotilomania (Foto: Ana Carolina Collini/Arquivo pessoal)

Moradora de São Roque convive há 20 anos com a tricotilomania (Foto: Ana Carolina Collini/Arquivo pessoal)

Segundo o médico psiquiatra Thiago Salum Fontana, o início do transtorno está ligado a situações estressantes em mais de um quarto de todos os casos. Os pacientes, em geral, negam o comportamento e muitas vezes tentam esconder as falhas.

“Em pessoas com o transtorno há maior prevalência de transtornos de humor, de ansidade e uso de substâncias psicoativas. Alguns atos de mutilação podem estar presentes, como roer as unhas e arranhar”, ressalta o médico.

Ainda de acordo com o médico, a idade média de início da tricotilomania é antes dos 17 anos e a doença ocorre mais comumente em mulheres do que em homens.

“Atenção ruim”

Nos 20 anos que convive com o transtorno, Ana Carolina afirma que conseguiu ficar sem arrancar os cabelos por, no máximo, dois meses. O preconceito com sua aparência afastou amigos e também tornou difícil entrar no mercado de trabalho.

Ana diz que chegou a usar perucas de fios naturais, mas não se reconhecia no espelho. Hoje, ela trabalha esporadicamente em eventos com pintura facial e recorre aos lenços para sair na rua. Em casa e nas redes sociais não se importa em se mostrar ao natural.

“Eu saio com o lenço para não constranger as pessoas que estão comigo. Meu namorado não liga, mas se eu sair sem, sei que vai chamar uma atenção ruim. Já perdi muitos amigos, pessoas que tinham vergonha por isso”, justifica.

Ana Carolina não 'se vê' com perucas e mantém o cabelo curtinho (Foto: Ana Carolina Collini/Arquivo pessoal)

Ana Carolina não ‘se vê’ com perucas e mantém o cabelo curtinho (Foto: Ana Carolina Collini/Arquivo pessoal)

Troca de experiências

Apesar de muitas pessoas terem se afastado, Ana diz que várias outras surgiram para dar suporte na luta diária contra a tricotilomania.

Em grupos nas redes sociais, Ana Carolina troca experiências com homens e mulheres que enfrentam o transtorno ou convivem com quem o tem. “São fundamentais, até os pensamentos são os mesmos”, conta.

Ela afirma que a distração é uma grande vilã. A leitura – uma de suas atividades preferidas -, a TV e o celular, por exemplo, tiveram que ser deixados de lado. Em contrapartida, Ana aprendeu a fazer alguns trabalhos manuais, como crochê e tricô.

“É um perigo, você arranca sem perceber. Então a gente desenvolve algumas técnicas para parar. Eu escrevo ou desenho até a vontade passar. Tem quem use luva, touca e fita nos dedos para dormir. Isso tira a sensibilidade porque a gente meio que escolhe o fio que vai arrancar”, afirma.

Ana Carolina diz que desenvolver trabalhos manuais ajuda no autocontrole (Foto: Ana Carolina Collini/Arquivo pessoal)

Ana Carolina diz que desenvolver trabalhos manuais ajuda no autocontrole (Foto: Ana Carolina Collini/Arquivo pessoal)

Tratamento

Segundo o médico psiquiatra Thiago Salum Fontana, a ajuda de profissionais multidisciplinares – como das áreas de psiquiatria, psicologia e dermatologia – é fundamental por se tratar de um transtorno do espectro da impulsividade, onde o problema está no autocontrole.

“É importante não demorar para buscar ajuda, pois com o passar do tempo ocorre a cronificação do transtorno, o que o deixa mais resistente às modalidades de tratamento”, ressalta o médico.

O Ministério da Saúde informou que a assistência a pessoas com tricotilomania está prevista de forma integral e gratuita em diversas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o Brasil. Entre os serviços de referência para acompanhamento estão as Unidades Básicas de Saúde e Unidades de Saúde da Família e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Em 2015, foram realizados 488 procedimentos ambulatoriais relacionados à tricotilomania, de acordo com o ministério. Em 2016, foram 54 atendimentos relacionados ao transtorno e, até julho de 2017, foram registrados 38 atendimentos ambulatoriais.

“Quando começa, você não reconhece que é uma doença. Você acha que é uma mania que quando quiser você para. O tratamento é fundamental, os medicamentos e as conversas. Sozinha, sem remédio nenhum, eu acredito que não tenha como parar”, finaliza Ana Carolina.

Médico psiquiatra Thiago Salum Fontana ressalta que o tratamento com profissionais multidisciplinares é fundamental (Foto: Divulgação)

Médico psiquiatra Thiago Salum Fontana ressalta que o tratamento com profissionais multidisciplinares é fundamental (Foto: Divulgação)

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