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Saúde

PEC sobre venda de plasma humano pode colocar doação de sangue em risco; entenda

Caso aprovada, comercialização de plasma humano pela indústria farmacêutica coloca em xeque a doação de sangue no Brasil

Caso aprovada, comercialização de plasma humano pela indústria farmacêutica coloca em xeque a doação de sangue no Brasil - Imagem: Reprodução/Freepik
Caso aprovada, comercialização de plasma humano pela indústria farmacêutica coloca em xeque a doação de sangue no Brasil - Imagem: Reprodução/Freepik

Ana Rodrigues Publicado em 04/10/2023, às 12h39


Uma proposta que busca mudar a Constituição e autorizar a comercialização de plasma humano pela indústria farmacêutica avança no Senado, colocando em xeque a doação de sangueno Brasil. O líquido amarelado feito de água, sais minerais e proteínas, o plasma representa 55% do volume sanguíneo. Depois de coletado, o sangue passa por uma centrífuga que separa o plasma para a fabricação de remédios para tratar pessoas com hemofilia, doenças autoimunes, cirrose, câncer, queimaduras, entre outras doenças.

Segundo o UOL, a Constituição de 1988 proibiu a venda de órgãos e tecidos humanos - incluindo o sangue e seus componentes - pois na década de 60, 70 e 80 pessoas empobrecidas vendiam sangue para sobreviver, com baixo controle de contaminação por HIVe hepatites.

Desde a decisão, cabe apenas ao Estado o processamento e distribuição de sangue no Brasil. Hoje, a estatal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) é a única autorizada a utilizar plasma para produzir medicamentos no país.

É essa exclusividade que uma PEC de 2022 quer acabar. De olho em um mercado de R$10 bilhões por ano na América Latina, a proposta avançou rapidamente no Senado e pode ser votada ainda nesta quarta-feira (4) na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), última etapa antes de ir para o plenário. Depois, a PEC precisa tramitar na Câmara antes de entrar em vigor.

Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora da CCJ, já expediu um parecer favorável que recebeu a antecipação de um voto aprovando a mudança.

A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos (...) bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização, com exceção ao plasma", § 4º da PEC do Plasma.

Com essa mudança, farmacêuticas privadas poderão coletar o plasma e fabricar remédios para exportação e venda ao mercado interno, inclusive ao SUS.

No Brasil, há 1.400 doadores para cada 100 mil habitantes. Já na Dinamarca - onde a doação é um exemplo -, a proporção é de 14 mil doadores para cada 100 mil pessoas.

Permitida a comercialização de plasma, haverá diminuição significativa das doações do sangue total. Se uma pessoa doa por solidariedade, ela começará a se perguntar se vale a pena doar sangue enquanto outros estão vendendo", defendeu o senador Humberto Costa (PT-PE), um dos principais opositores da PEC.

Costa também se refere a um trecho da PEC onde abre a possibilidade para que as farmacêuticas voltem a pagar pela doação, como no passado. A remuneração estava na proposta original, mas a pressão de opositores substituiu o trecho pela determinação de se aprovar uma lei para regulamentar os requisitos para coleta, processamento e comercialização de plasma.

O presidente da Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos), Nelson Mussolini, concordou que isso realmente não pode acontecer.

Antigamente passava um ônibus na praça da Sé, a pessoa entrava de um lado, doava e saía do outro com dinheiro para tomar um café".

Ele ainda defendeu que seja substituído o termo "remuneração" por "benefício".

Pode ser um desconto no plano de saúde, por exemplo. Já não é beneficiado quem doa sangue e tem folga do trabalho? A regulamentação também deve obrigar que parte do sangue remunerado vá para o SUS gratuitamente".

Mesmo sem a remuneração, porém, a doação de sangue seria afetada, diz a Hemobrás. Isso aconteceria, pois a PEC sugere que os laboratórios usem outro método para coletar o plasma, a chamada aférese. Ao contrário do método tradicional - que retira todo o sangue e separa seus componentes em uma centrífuga -, na aférese o sangue é bombeado para uma máquina que separa o plasma e devolve ao corpo as hemácias e plaquetas.

Isso permite doar 12 vezes por ano, contra quatro no método tradicional. Com isso, quem passar a doar plasma pode desistir de doar o sangue integral, colocando em risco a oferta de sangue no país", afirmou Frederico Batista, farmacêutico da estatal.
A PEC incentiva a doação de sangue", discordou o presidente da Sindusfarma.

E completou dizendo: 

Mas a regulamentação precisa dizer que uma parte do sangue remunerado deverá ir para o banco de sangue dos hospitais".

A indústria defendeu que a "concorrência" vai baratear os remédios feitos com plasma.

Temos empresas internacionais que vão instalar fábricas no Brasil. A Hemobrás terá de melhorar seus processos para produzir mais barato", disse Mussolini.

O senador discordou.

A Hemobrás é uma empresa estatal, sem qualquer interesse em auferir lucros", disse.

O problema é que a Hemobrás não é autossuficiente e ainda importa remédios feitos com plasma, às vezes com dispensa de registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). 

Essa importação está criando uma separação de classes. Ricos recebem medicamento com registro, pois os planos de saúde só cobrem se estiverem registrados na Anvisa, e o pobre no SUS fica com o resto", disse a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora da PEC.

Fundada em 2004, a Hemobrás precisa exportar parte do plasma brasileiro para laboratórios no exterior e importar os remédios prontos. Uma fábrica localizada em Pernambuco, no entanto, está na fase final de construção, e promete produzir todo o plasma necessário ao Brasil a partir de 2025. A estatal afirmou em nota que os preços do plasma seriam regulados pelo mercado internacional, elevando os preços praticados no Brasil.

O autor da PEC, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) escreveu no texto que o TCU (Tribunal de Contas da União) encontrou desperdício de quase 600 mil litros de plasma em 2020. A estatal disse que nunca desperdiçou plasma, e o tribunal informou ao UOL que ainda não decidiu sobre o assunto.

Em nota conjunta, o Ministério Publico Federal e o MP junto ao TCU criticaram a PEC. Afirmaram que, uma vez autorizada a comercialização, o plasma estaria sujeito ao livre mercado e às suas "regras e consequências", como manipulação de preços, estocagem indevida, concorrência desleal.

O CNS (Conselho Nacional de Saúde) também critica o texto. Afirmou em nota que a PEC fere a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) para que o sangue seja doado de forma voluntária e não remunerada.

A ministra da saúde Nísia Trindade, em uma live com o presidente Lula (PT) informou que é contra e que a mudança faria do plasma uma mercadoria".

O sangue não pode ser comercializado, não pode ter remuneração a doadores, isso foi uma conquista da Constituição. Estamos trabalhando para que o sangue não vire uma mercadoria", afirmou.
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