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Uma Comunidade Global

Uma Comunidade Global - Imagem: Reprodução | Li Xuanmin/Global Times
Uma Comunidade Global - Imagem: Reprodução | Li Xuanmin/Global Times
Marcus Vinícius De Freitas

por Marcus Vinícius De Freitas

Publicado em 05/10/2023, às 06h44


O Conselho de Estado da República Popular da China, país que acaba de comemorar o seu 74º aniversário, emitiu, no mês de setembro um importante documento intitulado “Uma Comunidade Global de Futuro Compartilhado: Propostas e Ações da China”.  Este extenso documento vem na esteira do aumento da relevância do país asiático em seu processo de ascensão global. O documento serve como uma cartilha para esclarecer o posicionamento do país e sua perspectiva quanto à construção de uma nova ordem de governança mundial.

O documento inicia a sua longa perspectiva a partir de uma pergunta fundamental: para onde caminha a humanidade? Esta é uma indagação essencial nas encruzilhadas da história ou quando pressentimos que um novo cenário surgirá, diferente daqueles com os quais nos acostumamos. Para o Ocidente, influenciado por uma perspectiva apocalíptica do mundo, torna-se, particularmente, difícil observar uma nova transição sem o necessário fim do mundo ou do retorno de um Messias há tanto esperado. Existem – é fato – alguns que acreditam ser os Estados Unidos uma nova Terra Prometida e que permaneceria o fiel da balança até o final dos tempos.

A realidade, no entanto, é que, paulatinamente, os Estados Unidos já não são, há algum tempo, o principal ator global. Não fossem as centenas de bases militares espalhadas pelo mundo e o poder do dólar norte-americano, além das principais universidades do mundo, talvez a comprovação do declínio estivesse ainda mais evidente. O fato é que mudanças e transições de eixo de poder deixam a todos impacientes e preocupados. Afinal, a única coisa constante na vida é a mudança. E como nós tememos as mudanças!

O documento é uma proposta baseada num velho adágio chinês que afirma: “A vitória é garantida quando as pessoas unem as suas forças. O sucesso é garantido quando as pessoas juntam as suas cabeças.” Com esta perspectiva, a China pretende oferecer uma alternativa diferente àquela observada na governança global desenhada pelo Ocidente, convidando a todos a juntar as cabeças para pensar as novas realidades. A China, que reafirma, com frequência, uma perspectiva de benefícios mútuos – também conhecida como “ganha-ganha” – pretende modificar o rumo do desenvolvimento global, a fim de que os frutos do desenvolvimento econômico sejam mais bem compartilhados. Neste cenário desenhado pela China, inexiste a possibilidade de uma nação ter um papel hegemônico. A prevalência de uma nação sobre as outras, baseada no poderio militar, não é a melhor forma de assegurar a relevância global de uma nação nem de fomentar, efetivamente, uma maior igualdade entre os países.

A China reconhece que a humanidade se encontra numa encruzilhada histórica e que qualquer movimentação equivocada pode levar a consequências avassaladoras. Sem uma perspectiva escatológica do planeta, a China afirma que o pensamento hegemônico de algumas nações pode fomentar uma perspectiva equivocada de supremacia, com a prevalência de interesses alheios à necessidade de promover solidariedade e cooperação. Nesta encruzilhada em que a humanidade se encontra existem três binômios: unidade ou divisão, abertura ou isolacionismo e, por fim, cooperação ou confronto. Num cenário de recuperação econômica pós-covid-19, a cooperação que deveria ter sido a tônica principal durante – e após – a pandemia foi altamente deslocada pelo interesse dos países em assegurarem, em primeiro lugar o benefício de suas populações.

Contrariamente às medidas anunciadas por europeus e norte-americanos, a China enfatiza que a globalização é uma das maiores realizações da unidade e que deve ser aprofundada e intensificada. A China reafirma, no documento, que a globalização não é uma opção, mas sim uma nova realidade e forma de viver, afinal a globalização nos fez compreender que o globo terrestre é, de fato, pequeno e que a humanidade pode estar cada vez mais aproximada.

Em contraposição à paz mundial, o abandono da globalização necessariamente implica maior instabilidade, incertezas e imprevisibilidade. O resultado disto é um incremento substancial no déficit de paz. O relógio do inverno nuclear nunca esteve tão próximo da meia noite.  Guerras por procuração podem constituir o estopim de um conflito cujos resultados seriam catastróficos. Tudo isto se vem agravando por uma política cada vez mais protecionista dos países ocidentais, utilizando subterfúgios como aversão ao risco, separação econômica, barreiras ambientais, ou até mesmo a produção em países próximos ou amigos como retórica para aumentar a cerca do isolamento da comunidade internacional. Como resultado disso, o déficit no desenvolvimento ascendeu substancialmente. E, com isto, as melhorias preconizadas pelo Ocidente, diluíram e, pela primeira vez em trinta anos, o Índice Global de Desenvolvimento Humano caiu: mais de 100 milhões de pessoas pioraram sua situação econômica e mais de 800 milhões vivem com fome.

Todo este cenário gera instabilidades – crises de energia, segurança alimentar e até mesmo de endividamento – criando a necessidade de alterações na governança global. Afinal, mantidas as condições atuais, o colapso global se transforma numa profecia irreversível. Neste cenário, entende a China, deve-se abandonar a equivocada perspectiva da hegemonia, da obsessão de superioridade de um país sobre os outros ou, ainda, a mentalidade de soma zero em que somente um país ou um grupo pequeno de países ganha e os outros perdem. Os chineses afirmam que a hegemonia é o prelúdio do declínio. Num período de maior conectividade e interdependência, o sucesso coletivo deve constituir-se na mola propulsora da interação entre as nações.

A partir da ideia de que “o oceano é vasto porque ele admite todos os rios”, a perspectiva chinesa é que o futuro da humanidade deve ser uma determinação coletiva, com regras internacionais escritas por todas as nações e os assuntos globais governados por todos, assim como o compartilhamento coletivo dos frutos do desenvolvimento.

A China preconiza, segundo reconhece no Documento, a necessidade de maior justiça e não de hegemonia. Uma vez que a Carta da Nações Unidas preconiza que todas as nações são iguais, nenhum país deveria sobressair-se aos demais, nem se lhes dá o direito de ditar as regras globais ou ainda monopolizar as vantagens do desenvolvimento coletivo. Por fim, dentre várias outras coisas abordadas no documento, a China reafirma que uma das maiores catástrofes do mundo hodierno tem sido a prática da duplicidade de critérios ou da aplicação seletiva da lei deve ser rejeitada. A atuação do Fundo Monetário Internacional, por exemplo, nas várias crises revelou a duplicidade dos critérios adotados na questão de ajuda aos países.

O gigante asiático tem clara a estratégia que pretende implementar neste período difícil de transição global. E o Brasil? Como pretende o Brasil atravessar esta época turbulenta da história e ainda assim assegurar um papel importante no tabuleiro internacional? Quando teremos um mapa da estrada que pretendemos seguir? A China tem claramente uma ideia para onde caminha a humanidade. E o Brasil? Qvo vadis?

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