Diário de São Paulo
Siga-nos
COLUNA

Um Ocidente Esquizofrênico

Cenário de guerra. - Imagem: Reprodução | Jornal da Unesp
Cenário de guerra. - Imagem: Reprodução | Jornal da Unesp
Marcus Vinícius De Freitas

por Marcus Vinícius De Freitas

Publicado em 13/12/2023, às 06h40


Consistência e coerência constituem dois dos maiores desafios da humanidade. Ao longo de milhares de anos, estes dois atributos têm sido considerados fundamentais à harmonia social. No entanto, pelo próprio legado judaico-cristão, a sociedade ocidental tem ao mesmo tempo primado por enormes avanços em determinadas áreas das relações humanas, porém, por outro, suas ações têm evidenciado incoerência e inconsistência. Na prática, a teoria é sempre outra.

Exemplos abundam na atuação dos países. Temos vários que demonstram, de modo claro, esta situação. No caso recente da guerra em Gaza, fica evidente que a política do estado israelense de extermínio do Hamas desconsidera qualquer ação de prevenção efetiva na redução de danos à população civil e inocente, por meio de uma punição coletiva que levará a uma situação cada vez mais insustentável assemelhando-se, efetivamente, a um genocídio ou, não ocorrendo este, a transformação de Gaza numa fábrica permanente de terroristas com ação local e global.

A atuação dos Estados Unidos em Taiwan vendendo bilhões de dólares, sob a alegação de proteger os interesses da presença norte-americana na Ásia, promove uma interferência ostensiva num assunto local da China e gera uma instabilidade regional desnecessária e que pouco ajuda para o crescimento global. Observa-se, claramente, uma tentativa de japanização da China – ou seja, contê-la, à semelhança daquilo que foi feito na década de 1970 para evitar que o Japão, efetivamente, se tornasse uma potência mundial. Para tanto, tentam-se recriar cenários para requentar um clima de guerra fria.

A atuação desastrada do Reino Unido na tentativa de transformar Ruanda num lugar de refúgio temporário – ou praticamente permanente – para aqueles que buscam asilo naquele país, também fere o limite do razoável e dos próprios princípios de Direitos Humanos que o país sempre propugnou internacionalmente.

A incoerência das políticas europeias de migração visando barrar a entrada de estrangeiros no continente europeu – o continente que – ressalte-se – foi um dos que mais exportou pessoas para todas as partes do globo, criando muitos dos problemas de instabilidade regional que se observa em vários países, agora busca proteger-se dos resultados negativos que criou mundo afora. A atuação colonial europeia ensejou a criação de situações que geram e perpetuam instabilidades políticas locais e regionais. Nenhum continente sofreu mais as consequências do devastador processo de colonização europeia do que a África e o Oriente Médio. A Europa, ao invés de recebê-los de portas abertas, tenta reduzir ao máximo a entrada destes estrangeiros sob a alegação de profunda alteração cultural.

As políticas de intervenção ocidental para promoção de democracia em várias partes do mundo se transformaram em atuações frustradas que somente deterioraram a situação dos países onde ocorreram. Afeganistão, Iraque, Líbia, somente para listar alguns, constituem exemplos claros de erros do Ocidente que condenaram milhões à morte, instabilidade econômica e o caos político e organizacional.

O fato é que a atuação global do Ocidente tem sido esquizofrênica. A doença, definida como uma dissociação da ação e do pensamento, é de enorme gravidade psiquiátrica. No caso do Ocidente, esta dissociação tem levado a uma deterioração cada vez mais aprofundada da sociedade e de seus valores. Ronald Reagan costumava dizer, por exemplo, que os Estados Unidos constituíam um farol para o mundo. Será que isto ainda é verdade? Como é possível falar-se em liberdade num Ocidente cada vez mais violento, empobrecido e sem perspectivas? Quem acredita, de fato, que os sistemas políticos atuais levarão o Ocidente a grandes avanços na melhoria da condição da vida social?

O fato é que também trocamos o dinheiro pelos valores. A obsessão pelo vil metal transformou um mundo de abundância numa sociedade de escassez. Quanto mais o tempo passa, mais a riqueza se concentra na mão de poucos. O aumento da pobreza, observada nas principais capitais do mundo ocidental, é uma mácula absurda de uma sociedade que pouco prima por cuidar dos seus. A insegurança social e o aumento da violência são retratos de uma sociedade doentia em que o estado não cumpre o seu dever fundamental de proporcionar segurança a seus cidadãos. O primeiro e mais fundamental compromisso do estado com seu cidadão é o da segurança coletiva. No entanto, uma sociedade esquizofrênica prefere armar-se a cobrar de seus agentes públicos a melhoria na questão da segurança. Liberta criminosos e narcotraficantes sob a desculpa da formalidade legal.

O Ocidente discute a mudança climática e seus efeitos terríveis num futuro incerto. No entanto, não propugna por melhorar as condições de vida das populações ou criar regras mais eficientes quanto à proteção de rios e evitar a degradação ambiental. Assiste bombas sendo lançadas diariamente criando verdadeiros problemas ambientais, porém se preocupa mais com um aquecimento que poderá ou não acontecer.

O Ocidente pretende liderar a questão dos direitos humanos, porém deixa rastros enormes de mortes mundo afora por mero interesse econômico e geopolítico. O Ocidente se opõe a alguns países ocupando posições importantes na questão de direitos humanos quando suas práticas atuais ou passadas foram, de fato, muito piores.

Enfim, a sociedade ocidental precisa reencontrar seu eixo para prosseguir relevante. A cultura ocidental ofereceu um arsenal de coisas boas para a humanidade. No entanto, com este arsenal adveio uma arrogância e sentido de superioridade injustificados. Esta arrogância é refletida na forma impávida como países e lideranças se arvoram como paladinos de valores superiores. O fato, no entanto,é que o tempo tem exposto as feridas do Ocidente, que precisam ser resolvidas.

À medida que a humanidade evolui, talvez fosse o caso de o Ocidente olhar um pouco mais para as filosofias orientais como forma de ampliar a sua visão, incorporando lições que ainda lhe faltam para, de fato, tornar-se a cidade que brilha na montanha. Quem sabe assim alcancemos maior coerência e consistência. É isso que a humanidade busca. E precisa.

Compartilhe  

últimas notícias