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Felipão 70 anos: o eterno retorno do treinador que sempre volta para casa

Em 12 de setembro de 1984, bateu saudade. Era a primeira vez que Luiz Felipe Scolari, 70 anos completados nesta sexta-feira, morava fora do Brasil. Em Dammam,

Felipão 70 anos: o eterno retorno do treinador que sempre volta para casa
Felipão 70 anos: o eterno retorno do treinador que sempre volta para casa

Redação Publicado em 09/11/2018, às 00h00 - Atualizado às 09h26


Técnico do Palmeiras completa nesta sexta-feira sete décadas de uma vida marcada por renascimento, apego à querência, títulos, decepções e mágoas

Em 12 de setembro de 1984, bateu saudade. Era a primeira vez que Luiz Felipe Scolari, 70 anos completados nesta sexta-feira, morava fora do Brasil. Em Dammam, cidade da Arábia Saudita cravada à beira do Golfo Pérsico, ele sentou-se à mesa e pegou papel e caneta. Começou a escrever:

“Amigo Bagatini e fam.

Anseio que esta te encontre bem tanto quanto os teus familiares. Nós estamos queimadinhos do sol e bem de saúde”.

Na primeira de duas páginas, Felipão descreve ao amigo o que encontrou em terras árabes: zagueiros que não sabem fazer cobertura, goleiros que são “brincadeira, só vendo para acreditar”, um camisa 5 apelidado de “quebra bola” e “um guri de 17 anos que tem noção de cobertura e tudo o mais, mas é fraquinho fisicamente”. Em seguida, pede informações de casa: quer saber como anda o Campeonato Gaúcho.

Cartas de Luiz Felipe Scolari para o amigo Bagatini, em 1984. Foi a primeira experiência dele fora do Brasil. E a vontade de voltar pra casa era enorme — Foto: Arquivo pessoal

Cartas de Luiz Felipe Scolari para o amigo Bagatini, em 1984. Foi a primeira experiência dele fora do Brasil. E a vontade de voltar pra casa era enorme — Foto: Arquivo pessoal

Cartas de Luiz Felipe Scolari para o amigo Bagatini, em 1984. Foi a primeira experiência dele fora do Brasil. E a vontade de voltar pra casa era enorme — Foto: Arquivo pessoal

Bagatini recebia as cartas mais de 12 mil quilômetros distante, em Pelotas, sul do Rio Grande do Sul. Ele era goleiro do Grêmio Esportivo Brasil – o Brasil de Pelotas –, para onde havia sido levado no ano anterior por Felipão, um jovem treinador no segundo ano de carreira. Antes, haviam se tornado grandes amigos no Caxias: Bagatini como goleiro, Felipão como zagueiro.

Nas cartas, antes de colocar a assinatura, Felipão escrevia: “Do amigo de sempre”. Nelas, estavam embutidos dois fundamentos de uma vida que agora completa sete décadas: o apego às raízes e a importância de se sentir querido. Eram ideias que estariam presentes também na carreira que o treinador, muito em breve, rechearia com títulos.

Felipão nos tempos de Caxias: sempre ao lado do goleiro e amigo Bagatini — Foto: Arquivo pessoal

Felipão nos tempos de Caxias: sempre ao lado do goleiro e amigo Bagatini — Foto: Arquivo pessoal

A querência

As taças começaram a se acumular na metade dos anos 90. Naqueles tempos, no Rio Grande do Sul, a impressão era de que o Grêmio jamais seria derrotado; que, mesmo se tudo desse errado, Danrlei defenderia, Paulo Nunes tiraria alguma jogada da cartola, Arce encontraria algum cruzamento que Jardel fatalmente transformaria em gol. O Grêmio vencia Gre-Nais jogando melhor, vencia Gre-Nais jogando pior, vencia Gre-Nais com o time reserva; e metia 5 a 0 no Palmeiras da Parmalat; e parava o Flamengo de Romário; e ganhava Copa do Brasil, Libertadores, Recopa, Brasileirão.

Em 1995, Grêmio goleia o Palmeiras por 5 a 0 pela Taça Libertadores

Em 1995, Grêmio goleia o Palmeiras por 5 a 0 pela Taça Libertadores

Era o Grêmio de Felipão – chamado assim até hoje. No rádio e na tevê, aquele time aparecia como símbolo de orgulho regional, e as reportagens buscavam trilhas sonoras que dessem conta dos feitos – e que, ao mesmo tempo, tivessem identificação com o comandante das conquistas. Uma delas cantava:

“Deus é gaúcho/ De espora e mango/ Foi maragato/ Ou foi chimango/ Querência amada/ Meu céu de anil/ Este Rio Grande gigante/ Mais uma estrela brilhante/ Na bandeira do Brasil.”

Trata-se de “Querência amada”, clássico de Teixeirinha. A palavra “querência”, para os gaúchos, é o Rio Grande, o lugar onde se foi criado – o chão que a pessoa ama e para onde quer voltar. Felipão entende o significado. Em 70 anos, criou várias miniquerências: Passo Fundo, onde nasceu; Canoas, onde viveu parte da vida; São Leopoldo, onde começou a jogar; Caxias do Sul, onde o sobrenome Scolari combina com o ambiente italiano; Pelotas, onde jogou e treinou; Porto Alegre, onde se consagrou. E são Paulo. E Lisboa.

Felipão e Cacalo no Grêmio dos anos 90 — Foto: Reprodução/RBS TV

Felipão e Cacalo no Grêmio dos anos 90 — Foto: Reprodução/RBS TV

O curioso é que Felipão também criou querências no futebol. Uma marca da carreira de Scolari é sempre voltar – como se fosse o treinador do eterno retorno. Ele treinou três vezes o Grêmio, três vezes o Palmeiras, duas vezes a seleção brasileira. Jogou no Juventude e depois retornou como treinador (duas vezes). Jogou no CSA e depois retornou como treinador. Foi três vezes trabalhar no Oriente Médio. Foi duas vezes trabalhar na Ásia. Felipão sempre volta.

– Acontece que ele se sente bem nos lugares. No Grêmio, ele se sentia rigorosamente em casa, tanto que foi convidado muitas vezes a voltar. Depois do jogo contra a Alemanha, foi o Grêmio que o acolheu – lembra Luís Carlos Silveira Martins, o Cacalo, diretor jurídico na primeira passagem de Felipão pelo Grêmio, em 1987, e braço direito do treinador nos anos 90, como diretor de futebol.

Esta acolhida tocou Felipão. No começo do julho de 2014, ele parecia acabado para o futebol. A pior derrota da história da seleção brasileira (7 a 1 para a Alemanha nas semifinais da Copa, no Mineirão) desabava sobre o treinador. Três semanas depois da partida, porém, ele era apresentado como técnico do Grêmio. E, emocionado, dizia:

– O Grêmio é o único time que me faria voltar.

Mas houve outros retornos que não estavam nos planos do treinador – sempre para onde se sentia querido. Em 2008, disse que planejava trabalhar até os 65 anos (ou seja, até 2013); um ano depois, em 2009, afirmou que não pretendia voltar a treinar a Seleção. E acabou que, em 2014, seguia treinando – e treinando justamente a Seleção. Este ano, quando deixou a China, a ideia era ficar pela Europa. Voltou para o Palmeiras.

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Quem conviveu com Felipão vê nisso um caminho de mão dupla: ele gosta de voltar a lugares onde foi feliz, mas só volta porque também ajudou a tornar estes lugares felizes.

– Às vezes, o profissional se identifica com o lugar, mas o lugar não se identifica com o profissional. Não é só fazer um trabalho de excelência: é diretores, torcedores, jogadores gostarem dele. Por mais que seja visto como um cara um pouco duro, ele é extremamente agregador, um cara que preserva o ambiente. Isso cativa as pessoas e faz com que o queiram de volta – comenta o ex-meia Ricardinho, campeão mundial na Copa de 2002, com Felipão no comando, e hoje comentarista do SporTV.

O eterno retorno de Felipão se mostra nas duas pontas da carreira: no presente, como comandante do Palmeiras pela terceira vez, e no passado, em 1967, quando iniciou a carreira de jogador no Aimoré e passou a frequentar uma casa que ele jamais esqueceria.

Documentos de Felipão como treinador e dos tempos de escola — Foto: Arquivo pessoal

Documentos de Felipão como treinador e dos tempos de escola — Foto: Arquivo pessoal

Histórias como jogador

Luiz Felipe Scolari nasceu em Passo Fundo, no norte gaúcho, em 9 de novembro de 1948, filho de Benjamin Scolari e Cecy Leda Scolari. Foi lá que começou a se dedicar ao futebol, unindo duas famas: ruim de bola e dedicado.

O pai, comerciante, não era simpático à ideia de o filho tentar a sorte no futebol. Mas nem a mudança da família para Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, para cuidar de um posto de combustível, intimidou os planos de Luiz Felipe, então adolescente.

RBS Esporte lembra trajetória de Felipão no Aimoré

RBS Esporte lembra trajetória de Felipão no Aimoré

No fim dos anos 60, ele se via envolvido entre quatro cidades: morava em Canoas, estudava Educação Física à noite em Porto Alegre, dava aulas pela manhã em Montenegro (a 60km da capital) e, à tarde, arranjava tempo para treinar no Aimoré, clube de São Leopoldo, onde chegava de fusca, munido de um chapelão na cabeça e vestido com calça boca de sino.

Na correria, mal dava tempo de comer. E era aí que uma pequena casa, cravada nas arquibancadas do estádio Cristo Rei, funcionava como segundo lar. Felipão passava por lá todos os dias para filar um café de dona Ilaídes e o esposo, Lírio. Também era lá que os atletas faziam refeições maiores, alertados pelo barulho de uma faca batendo em um prato quando a comida estava pronta.

Felipão: o fusca, o chapéu e a calça boca de sino nos tempos de Aimoré — Foto: Agência RBS

Felipão: o fusca, o chapéu e a calça boca de sino nos tempos de Aimoré — Foto: Agência RBS

Meio século depois, a casa ainda existe, e dona Ilaídes segue lá. Nos anos 90, já homem famoso, Felipão foi ao estádio com o Grêmio. Na chegada do elenco, uma confusão se formou, e o treinador não teve dúvidas: foi na direção daquela porta que conhecia tão bem, entrou, se acomodou lá e trocou algumas palavras com os velhos amigos. Estava em casa.

Foi no Aimoré que Felipão mostrou zero aptidão para a lateral direita e migrou para a zaga. Em 1973, rumou para o Caxias, na Serra Gaúcha, terra habitada por famílias saídas do Vêneto, na Itália – como os Scolari. Sentiu-se ainda mais em casa. Não demorou a se estabelecer na comunidade: fez amigos, passou a dar aulas em uma escola local, firmou-se como zagueiro.

A amizade foi forte com Bagatini. O goleiro e o zagueiro eram os únicos que conciliavam estudos com o futebol – Bagatini fazia engenharia, e Felipão seguia no curso de educação física. Não demorou para o goleiro descobrir um lado pouco conhecido de Scolari. Uma noite, na concentração, dormindo com os pés para fora da cama (não cabia inteiro nela) no alojamento do clube, sob as arquibancadas do estádio Centenário, Bagatini acordou em desespero. Seus pés pareciam queimar. Felipão e outros dois jogadores haviam colocado jornais entre os dedos do goleiro e ateado fogo neles. Bagatini, enfurecido, viu Felipão gargalhando. Quis esganá-lo – mas preferiu ir para cima de outro jogador, Jurandir, o mais baixinho daqueles que estavam no quarto.

Felipão reencontra Bagatini em Caxias do Sul, uma de suas várias casas — Foto: Divulgação/S.E.R Caxias

Felipão reencontra Bagatini em Caxias do Sul, uma de suas várias casas — Foto: Divulgação/S.E.R Caxias

Em campo, os laços foram estreitados. Eles se entendiam – quase sempre. Em um jogo contra o Botafogo, zagueiro e goleiro foram na mesma jogada. Bagatini acabou socando a bola e a cabeça do amigo; e a bola cruzou as arquibancadas e quase saiu do estádio. Fischer, atacante do Botafogo que observava a cena de perto, olhou para os dois, espantado, e disse: “Aqui eu não volto mais”.

Naqueles tempos, mesmo jovem, Felipão já era um líder evidente. A ponto de indicar meninos para testes no clube. Nos jogos entre escolas da cidade, ele tinha observado um meia habilidoso, bom de passe. Um dia, por acaso, passou em uma concessionária e viu o garoto trabalhando como office-boy. Sugeriu que ele fosse até o clube e tentasse a sorte. O menino se chamava Adenor, tinha sobrenome italiano, Bacchi, e hoje é conhecido como Tite – o técnico da seleção brasileira.

Tite foi aprovado e chegou a jogar com Felipão, mas era muito jovem – e o zagueiro logo mudou de clube. Foi para o Juventude, depois para o Novo Hamburgo. E aí saiu do futebol gaúcho. Foi parar em Alagoas para jogar no CSA, último clube da carreira.

Tite e Felipão têm curioso passado em comum

Tite e Felipão têm curioso passado em comum

Em Maceió, chegou junto com os outros gaúchos e disposto a, como vinha se tornando hábito, ser o líder do elenco. Mas deu de cara com Jacozinho. Eles eram opostos: Felipão prezava pelos bicos para a lateral; Jacozinho ia driblando até a bandeirinha de escanteio e ficava rebolando na frente dos adversários; Felipão era adepto da concentração total e do respeito às regras; Jacozinho se juntava com os colegas para sair à noite depois dos jogos fora de casa e encontrar um barzinho para tomar cerveja. Nos primeiros dias, Felipão queria o pescoço de Jacozinho. Depois, entendeu que era preciso se unir ao atacante.

– Ele era daqueles zagueiros que chegam rasgando. Em um dos primeiros treinos, meti embaixo das pernas dele, e ele ficou todo torto. Quando ele chegou aqui, o bambambam era eu. Ele chegou querendo mandar, e eu disse: “Opa, aqui não. Chegou agora e quer ir para a janela da frente?” Mas logo viramos grandes amigos – conta Jacozinho.

Felipão, sempre de bigode, nos tempos de CSA, último clube em que jogou — Foto: Museu dos Esportes

Felipão, sempre de bigode, nos tempos de CSA, último clube em que jogou — Foto: Museu dos Esportes

Felipão, longe de sua terra, do outro lado do Brasil, encerraria a carreira como jogador em 1981 – depois de conquistar o título alagoano, o único como atleta. E começaria a de treinador no ano seguinte. No mesmo time, na mesma casa.

Histórias como treinador

Scolari gosta de brincar que só foi demitido de dois clubes na vida: o Chelsea, da Inglaterra, e o CSA. Em Maceió, foi efetivado por sugestão do técnico Walmir Louruz, que o havia levado para lá como zagueiro. A dica de Louruz foi para João Lyra (pai de Theresa Collor, ex-cunhada de Fernando Collor de Mello) e Augusto Farias (irmão de PC Farias, ex-tesoureiro de Collor), presidente e vice do clube na época. Eles toparam.

Felipão, de cara, teve o desafio de enfrentar o Campeonato Brasileiro. Após sete jogos (uma vitória, quatro empates e duas derrotas), foi mandado embora. Retornou para o Rio Grande do Sul. Treinou primeiro o Juventude, depois o Brasil de Pelotas. No segundo, todo desconfiado, encontrou um antigo conhecido que, lhe parecia óbvio, estava ali para sacaneá-lo: Flávio Teixeira, o Murtosa.

Fiel escudeiro de Felipão, Murtosa relembra as melhores histórias da dupla

Fiel escudeiro de Felipão, Murtosa relembra as melhores histórias da dupla

Ele conhecia a peça de outros tempos. Quando zagueiro, costumava encontrar Murtosa, atacante de times gaúchos, pelos gramados barrentos do interior. Murtosa virou preparador físico e depois treinador do Farroupilha, outro clube de Pelotas. E foi chamado para treinar o Brasil, mas só aceitou ir como preparador físico. Já que rejeitara o convite para comandar a equipe, acabou consultado sobre um nome sugerido à diretoria: que tal Luiz Felipe Scolari?

Felipão como técnico do Brasil de Pelotas nos anos 80 — Foto: Reprodução

Felipão como técnico do Brasil de Pelotas nos anos 80 — Foto: Reprodução

Murtosa foi sincero. Disse que não ia com a cara do sujeito, porque costumava levar pancadas dele em campo. Mas Felipão foi contratado mesmo assim. E, nos primeiros dias, mal falou com o preparador. “Faz o teu trabalho, e eu faço o meu”, dizia o treinador ao colega de comissão técnica.

O preparador físico achava aquilo muito estranho. E a diretoria percebeu a falta de entrosamento entre os dois. Um dirigente resolveu chamá-los para um jantar: queria saber, afinal, o que estava acontecendo. E aí Felipão abriu o jogo: estava desconfiado de que Murtosa tentaria derrubá-lo para assumir a função de técnico. Murtosa garantiu que a ideia jamais lhe passara pela cabeça. E os dois, a partir daquele dia, iniciaram uma amizade que os levaria, juntos, mundo afora: onde houvesse Felipão, haveria Murtosa.

Murtosa toma chimarrão na Seleção, acompanhado de Scolari e Parreira — Foto: Divulgação / CBF

Murtosa toma chimarrão na Seleção, acompanhado de Scolari e Parreira — Foto: Divulgação / CBF

A parceria começou a dar resultados em 1983, em campanha sólida do Brasil de Pelotas no Gauchão. Exemplo: enfrentou o Grêmio seis vezes ao longo do ano. Não perdeu nenhuma. Em dois dos jogos, o time tricolor já tinha Renato, o jovem atacante que, em dezembro, conduziria o Grêmio ao título mundial. No ano seguinte, ainda com Felipão, o Brasil também iria bem no Campeonato Brasileiro – inclusive vencendo o Flamengo em Pelotas.

Em 1984, Luiz Felipe Scolari fala sobre a preparação para jogo contra o Flamengo

Em 1984, Luiz Felipe Scolari fala sobre a preparação para jogo contra o Flamengo

Em 1984, Felipão viveu uma situação inusitada – relatada por Bagatini ao jornal “Pioneiro”. Um jogador recebeu uma proposta de suborno e, sem rejeitá-la, comentou com o goleiro – que imediatamente passou o caso para Felipão. E o técnico armou um plano: colocou laxante na vitamina do atleta. Nas horas seguintes, o treinador e Murtosa ficaram de olho na vítima, esperando que o remédio desse efeito. E nada aconteceu. Por sorte, choveu forte no dia do jogo, e como o atleta era franzino, foi retirado sob a justificativa de que era necessário alguém mais forte para lidar com o campo pesado – depois, acabou dispensado.

O trabalho em Pelotas alçou Felipão ao exterior. Quando foi procurado pelo Al-Shabab, exigiu levar Murtosa junto. Antes do acerto, foi perguntado pelos representantes dos árabes se ele e o amigo sabiam falar inglês. Disse que sim, sem problemas – ele arranhava uma ou outra palavra, e Murtosa, nada. Já em terras árabes, “queimadinhos de sol”, como escreveu nas cartas para Bagatini, Felipão e Murtosa usavam o tempo livre para escutar aulas de inglês em fitas K7.

Elas acabariam sendo úteis no futuro, quando Scolari retornaria ao Oriente Médio para trabalhar no Kuwait (inclusive na seleção nacional, de onde sairia no começo da Guerra do Golfo, voltando às pressas para o Brasil). Mas a primeira passagem pela região foi curta – mesmo com um bom aumento de salário para a segunda temporada. Em 1986, Felipão estava de volta ao CSA (sempre retorna), de onde rumaria para Pelotas e Juventude (sempre retorna), e então para o Grêmio.

Na primeira oportunidade em um clube grande, Felipão viveu alegrias e sustos. Foi campeão gaúcho daquele ano e fez boa campanha no Brasileirão (o preparador físico era Celso Roth). Mas, em uma excursão à Suíça, viu quatro jogadores serem detidos, acusados de estupro. Um deles era Cuca, atual técnico do Santos. Os atletas foram liberados e sempre negaram as acusações.

Felipão e Celso Roth, como preparador físico, campeões gaúchos em 1987 — Foto: Divulgação

Felipão e Celso Roth, como preparador físico, campeões gaúchos em 1987 — Foto: Divulgação

No ano seguinte, Felipão não estava mais no Grêmio, mas tinha plantado uma semente para retornar. O processo foi acelerado quando, em 1991, ele surpreendeu o Brasil ao conquistar a Copa do Brasil com o Criciúma. A final foi justamente contra o Grêmio.

No Criciúma, Felipão já demonstrava traços que marcariam uma carreira em construção: um misto de firmeza e cumplicidade no tratamento com os atletas.

– Ele criou um grupo pequeno, de uns 20 jogadores, e formou um ambiente muito homogêneo. Já era possível ver como seria como treinador. Era exigente, disciplinador, mas também fazia muitas brincadeiras. Lembro que fazíamos um ato para eleger o cara mais safado do mês. O cara subia em um degrauzinho, a gente colocava um cinturão nele, e ele era consagrado o cara do mês. O Felipão participava dessas brincadeiras – lembra Wilsão, ex-zagueiro do Criciúma.

Em 1991, Criciúma festeja o título da Copa do Brasil e vaga na Libertadores

Em 1991, Criciúma festeja o título da Copa do Brasil e vaga na Libertadores

Felipão aproveitou a taça para retornar ao Oriente Médio e garantir mais segurança financeira. Em 1993, foi convidado para treinar novamente o Grêmio – e sua vida nunca mais foi a mesma.

Curiosamente, Scolari fez sua reestreia… na Itália. Ele assumiu o comando gremista na véspera de uma viagem para a Europa. No primeiro jogo, empatou por 1 a 1 com o Bologna. No time, só havia um jogador da escalação que, dois anos depois, estaria na ponta da língua dos torcedores na conquista da Libertadores – o meia Carlos Miguel. Dener, prodígio do futebol brasileiro, também estava no time daquele amistoso. Menos de um ano depois, já como jogador do Vasco, morreria em um acidente de carro.

Felipão treina o Grêmio nos anos 90: campeão em todos os anos — Foto: Reprodução/RBS TV

Felipão treina o Grêmio nos anos 90: campeão em todos os anos — Foto: Reprodução/RBS TV

No retorno ao Grêmio, Felipão ficou ressabiado por a diretoria insistir em manter o preparador físico do clube. O treinador preferia indicar um profissional de sua confiança. Mas foi convencido a pelo menos testar o preparador por alguns dias. Ele se chamava Paulo Paixão – e, a exemplo de Murtosa, acompanharia Scolari nas principais conquistas do treinador.

– Lembro de pensar: “Pô, esse gringo é cheio de coisinha”. Naquela época, preparador e treinador dividiam quarto no hotel. Cheguei todo cheio de medo e pensei: “Vou deixar ele escolher a cama”. Ele já chegou jogando a mala numa cama qualquer e me mandando tomar não sei onde, me dizendo pra parar de frescura. Ficamos mais de dez anos juntos – comenta Paixão.

Foi a partir de 1994 que Felipão começou a armar o Grêmio do jeito que queria. E os resultados vieram a reboque: campeão da Copa do Brasil.

Mas foi no ano seguinte que a mudança surgiu de verdade. Foi aí que começaram a brotar no Olímpico os jogadores que formaram o primeiro grande time de Felipão. A pedido dele, chegaram Dinho e Luís Carlos Goiano. Com aval dele, o clube também buscou Arce, Rivarola, Adilson, Jardel. Graças a ele, ganharam espaço Danrlei, Roger, Arílson. E, apesar dele, apareceu Paulo Nunes.

Reveja a final da Libertadores de 1995, conquistada pelo Grêmio

final da Libertadores de 1995, conquistada pelo Grêmio

Felipão tinha pedido à diretoria o atacante Magno, do Flamengo. E levou. Mas, na hora de fechar a negociação, o Grêmio teve direito a escolher mais um jogador. Eram tempos de comunicação mais complicada. Não havia tempo para entrar em contato com Felipão e aí escolher o jogador mais interessante para o treinador. Cacalo acabou escolhendo Paulo Nunes.

– Chegamos em Canela (cidade da Serra Gaúcha), onde o Felipão estava fazendo a pré-temporada, e ele me chamou para conversar. Ficou me perguntando o que eu queria com aquele baixinho. “Esquece, não vai jogar, não tem como dar certo”, ele me dizia – lembra Cacalo.

Jardel teve o aval de Felipão; sobre Paulo Nunes, primeira reação foi: "Não vai jogar" — Foto: Reprodução

Jardel teve o aval de Felipão; sobre Paulo Nunes, primeira reação foi: “Não vai jogar” — Foto: Reprodução

Paulo Nunes viraria titular absoluto do time, formando dupla de ataque com Jardel. Faria gols nas finais da Libertadores de 1995 (no primeiro jogo) e do Brasileirão de 1996 (no segundo), as principais conquistas de Felipão no Grêmio. E seria levado pelo treinador para o Palmeiras.

Antes da primeira experiência no Verdão, Scolari passaria pelo Japão, no Jubilo Iwata – Dunga fazia parte daquele time e, junto com Paulo Paixão, ajudava na tarefa de convencer o treinador de que era possível ensinar os japoneses a jogar bola.

– Teve um treino em que ele pediu para o jogador receber com uma perna, girar para a outra e sair jogando. Aí foi o passe, mas foi na perna errada, e o japonês, para seguir a orientação, se enrolou todo, quase caiu. O Felipão me disse: “Negão, não dá, tô indo embora”. E eu: “Calma! Você veio até aqui pra quê?”. No fim, ele ficou, mas um dia me chamou e disse: “A Parmalat ligou. A gente vai embora” – recorda Paulo Paixão.

A Parmalat era a poderosa patrocinadora do Palmeiras, contra quem, nos anos anteriores, o Grêmio de Felipão havia travado duelos históricos – incluindo as oitavas de final da Libertadores de 1995 e as semifinais da Copa do Brasil de 1996. Ir para o Palmeiras era ir para um rival. Mas Felipão sabia: ali estava uma grande chance.

Felipão teve o que pediu – e deu resposta. Pediu que o Palmeiras fosse buscar Paulo Nunes em Portugal, e Paulo Nunes fez gol na final da Copa do Brasil de 1998. Pediu que o Palmeiras tirasse Arce do Grêmio, e Arce fez o primeiro gol da campanha do título da Libertadores de 1999 – contra o Corinthians, no primeiro Dérbi da história da competição.

Felipão ergue a taça da Libertadores de 1999 pelo Palmeiras — Foto: Arquivo / Agência Estado

Felipão ergue a taça da Libertadores de 1999 pelo Palmeiras — Foto: Arquivo / Agência Estado

Os clássicos foram decisivos na identificação de Felipão com o Palmeiras. Foram duas eliminações sequenciais sobre o rival em Libertadores, nas quartas de final em 1999 e nas semifinais em 2000, quando ficou famosa a bronca de Felipão nos jogadores após a derrota de 4 a 3 no jogo de ida. “Vocês têm que ter na cabeça isso tudo que eu tô falando pra vocês. Raiva dessa porra de Corinthians!”, gritava Felipão. Luciana DeMichelli, a jornalista responsável pela reportagem para a TV Globo naquele dia, disse este ano, ao GloboEsporte.com, que desconfia que Felipão planejou que a bronca fosse escutada pela imprensa – como estratégia para pilhar o elenco.

Jornalista relembra dia em que ouviu Felipão pedir

Jornalista relembra dia em que ouviu Felipão pedir “raiva dessa p… de Corinthians”

Deu certo. O Palmeiras venceu o segundo jogo por 3 a 2, foi aos pênaltis e avançou à final – acabou derrotado, também nos pênaltis, pelo Boca Juniors. Felipão deixou o clube ainda em 2000, tão campeão quanto no Grêmio, e foi para o Cruzeiro, o terceiro clube dos chamados 12 grandes que ele dirigiu, e o único onde não ficou bastante tempo. Por um motivo muito simples: a seleção brasileira.

Em 1999, Palmeiras vence Corinthians nos pênaltis pela Taça Libertadores

Em 1999, Palmeiras vence Corinthians nos pênaltis pela Taça Libertadores

Chamado pela CBF, Felipão aceitou. A situação era complicada nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002, e a primeira medida de Felipão foi voltar para casa. Pediu que o jogo contra o Paraguai fosse em Porto Alegre, no Olímpico. Convocou jogadores do Grêmio – Tinga, Eduardo Costa e Marcelinho Paraíba. No hino nacional, ao sentir o apoio dos torcedores, começou a chorar.

Em 2001, Brasil vence o Paraguai por 2 a 0 e se aproxima de vaga na Copa do Mundo

Em 2001, Brasil vence o Paraguai por 2 a 0 e se aproxima de vaga na Copa do Mundo

O Brasil venceu por 2 a 0 e depois cambaleou até a classificação como terceiro colocado, perdendo para Argentina e Bolívia fora de casa, vencendo Chile e Venezuela dentro. Com a vaga, Felipão ganhou tempo para impor suas convicções. Montou a Família Scolari. E, assim, foi campeão mundial.

Três momentos ocorridos naquela Copa ajudam a explicar como Felipão reuniu o elenco em volta dele.

  • Um dia, na concentração, ciente de que alguns jogadores estavam chateados por serem pouco usados na Copa, Felipão procurou o elenco e encontrou os atletas dentro de um ofurô. Entrou de roupa e tudo. Acomodou-se lá e começou a conversar com o elenco. De tanto falar, chegou um momento em que acabou interrompido por Cafu, que disse: “Beleza, professor, mas a gente vai acabar torrando aqui dentro com essa água quente”.
  • Depois da semifinal, em Saitama, decidiu ir direto para Yokohama, cidade da final, em uma mudança repentina de planos. No ônibus, liberou que os jogadores tomassem cerveja, confiante de que isso os ajudaria a dormir quando chegassem ao destino – como de fato aconteceu.
  • Na véspera da final, ao caminhar pelo hotel, percebeu que os jogadores, entre eles Ronaldo, improvisavam um jogo de golfe no corredor do hotel. Inicialmente, pensou em mandá-los de volta para os quartos. Mas lembrou do que acontecera com Ronaldo quatro anos antes, na Copa da França, com o mal-estar horas antes da final. E achou por bem tranquilizar os jogadores. Foi até eles e ficou por lá conversando.
Luiz felipe scolari abraça Rivaldo na comemoração do título mundial de 2002 — Foto: Getty Images

Luiz felipe scolari abraça Rivaldo na comemoração do título mundial de 2002 — Foto: Getty Images

Nos anos seguintes ao Penta, Felipão se mostrou reticente de voltar a treinar a Seleção – mas sempre manteve um flerte aberto. Até que veio o convite para 2014, depois da queda de Mano Menezes, e ele aceitou. Sabia que tinha muito a perder: já era um campeão do mundo, e uma decepção em casa poderia arranhar sua imagem. Mas topou mesmo assim.

De cara, já na apresentação, Felipão comprou o discurso patriótico da CBF, representada por José Maria Marin, presidente da entidade na época, hoje preso nos Estados Unidos. Sua presença lá era um resgate do passado – mais do que um avanço. Felipão não vinha de bom trabalho na segunda passagem pelo Palmeiras (conquistara a Copa do Brasil, mas vira o time caminhar para o rebaixamento em 2012). Naquele momento, era mais do que um treinador: era um emblema de uma Seleção campeã.

Felipão conversa com José Maria Marin, ex-presidente da CBF — Foto: Jefferson Bernardes / VIPCOMM

Felipão conversa com José Maria Marin, ex-presidente da CBF — Foto: Jefferson Bernardes / VIPCOMM

E o início foi promissor. Vieram bons resultados, sobretudo no título da Copa das Confederações, em 2013, com a torcida inflamada, apoiando o time do jeito que Felipão pedia. Mas foi diferente em 2014. E um misto de pressão, azar e escolhas erradas levou o Brasil a sua pior derrota.

Contra a Alemanha, a ausência de Thiago Silva e Neymar forçou Felipão a mudar o time. Ele foi orientado, por pessoas de sua comissão técnica, a reforçar o sistema de marcação, colocando Paulinho no time. Contra um adversário tão forte, seria uma escolha natural, dado o pragmatismo que marcou a carreira dele. Mas Felipão surpreendeu ao escalar Bernard – apostando em um time que jamais treinara em coletivos. E o Brasil, assombrado pelos gols iniciais, desnorteado pela necessidade patriótica de vencer em casa, desabou no gramado do Mineirão, diante dos olhos de um Felipão absorto, incrédulo.

Scolari, perplexo, abre os braços durante jogo contra a Alemanha em 2014 — Foto: Reuters

Scolari, perplexo, abre os braços durante jogo contra a Alemanha em 2014 — Foto: Reuters

As dores e as mágoas

Em 12 de julho, quatro dias depois de levar 7 a 1 da Alemanha, o Brasil perdeu por 3 a 0 para a Holanda na disputa do terceiro lugar da Copa do Mundo. Desde aquele dia, Luiz Felipe Scolari não dá entrevistas exclusivas ou participa de reportagens especiais da TV Globo. Apesar disso, ele aceitou receber um bolo de presente da apresentadora Ana Maria Braga – você assiste no Globo Esporte desta sexta-feira.

Felipão entende que o comentário de Galvão Bueno no Jornal Nacional daquela noite jogou sobre ele a culpa pelo fracasso brasileiro na Copa (veja no vídeo abaixo). Sua relação com a imprensa costumava ter relativa abertura – mas marcada por momentos de tensão, como em 2010, quando chamou um repórter de palhaço e, dias depois, foi alvo de um protesto: um grupo de jornalistas parados diante dele com narizes vermelhos sobre o rosto.

Galvão Bueno faz balanço da seleção brasileira na Copa do Mundo

Galvão Bueno faz balanço da seleção brasileira na Copa do Mundo

Hoje, passados mais de quatro anos do Mundial do Brasil, o entendimento de Felipão é de que não é valorizado pela imprensa brasileira. Sente-se diminuído. É uma mágoa que ele carrega.

Outra envolve Tite. Eles tiveram uma série de desentendimentos nos últimos anos. Uma delas foi um bate-boca à beira do campo, em 2011, em um clássico entre Corinthians e Palmeiras, quando Tite proferiu o famoso “fala muito” para o adversário. Antes, em 2010, a relação já tinha ficado estremecida por Tite entender que o Palmeiras não se esforçou para vencer o Fluminense, concorrente do Corinthians na briga pelo título. No ano passado, em entrevista à ESPN Brasil, Felipão escancarou a mágoa.

– Esta palavra (gratidão) não existe mais. Você acha isso correto de quem conhece há 30 anos, de quem te abriu todas as portas? Quem te deu a oportunidade de ser jogador do Caxias, de começar na carreira e arranjar lugares fora do Brasil para trabalhar? Essa é a gratidão? – questionou Felipão.

Em meio à mágoa, Tite tentou contato com Felipão quando assumiu a Seleção e decidiu procurar alguns treinadores. Disse que mandou e-mails, mas não teve resposta.

Tite, pela beleza da história do começo da relação com Felipão, acaba sendo um dos pontos mais tristes de uma longa lista de desafetos de Scolari. Ela vai de Lincoln (que afirmou ver jogadores descontentes com o treinador no Palmeiras) a Didier Drogba (um dos responsáveis por uma espécie de boicote a Felipão no Chelsea, depois de o treinador proibir que fosse a Cannes se recuperar de uma lesão); de Vanderlei Luxemburgo (chegaram a brigar à beira do campo nos anos 90) a Kleber Gladiador (com quem se desentendeu no Palmeiras e a quem deixou afastado no Grêmio).

Os defensores de Felipão enxergam nas rusgas um reflexo da exigência por lealdade de Scolari – e de seu estilo franco. Os críticos acreditam que é consequência de certa afeição a um estilo autoritário. Curiosamente, foi no Palmeiras que o treinador teve mais polêmicas. E foi o Palmeiras que o abrigou mais uma vez.

Na volta ao Palmeiras, Felipão reencontra uma de suas muitas casas — Foto: Marcos Ribolli

Na volta ao Palmeiras, Felipão reencontra uma de suas muitas casas — Foto: Marcos Ribolli

A nova passagem do treinador pelo clube ocorre em um momento diferente. O Palmeiras parecia migrar para um perfil de profissionais acadêmicos, jovens, modernos – que combinassem com a transformação do clube. Felipão, mais centralizador, chegou com suas velhas armas: carisma com a torcida, ascendência sobre o elenco e histórico de sucesso em competições de mata-mata. Acabou, porém, eliminado tanto na Copa do Brasil quanto na Libertadores. Briga forte pelo título brasileiro.

Ao receber o convite do Palmeiras, Felipão estava em Portugal. É lá que mora (a exemplo do filho mais velho), embora também tenha residência em São Paulo, e também em diferentes cidades do Rio Grande do Sul (onde mora o filho mais novo), como Caxias do Sul, onde o amigo Bagatini talvez resuma da melhor forma possível como é, para Felipão, se sentir em casa.

– Por aqui, ninguém pergunta para ele do 7 a 1.

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