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Histórias Reais

Mulher conta sua experiência com "cura gay"; 'Estava cansada de viver uma mentira'

A mulher conta que viveu uma adolescência de restrições, e para ela, a pior delas foi a de não poder ser quem era

A mulher conta que viveu uma adolescência de restrições, e para ela, a pior delas foi a de não poder ser quem era - Imagem: Reprodução/Instagram @magalhaesmilla
A mulher conta que viveu uma adolescência de restrições, e para ela, a pior delas foi a de não poder ser quem era - Imagem: Reprodução/Instagram @magalhaesmilla

Ana Rodrigues Publicado em 25/10/2023, às 12h24


Milla Magalhães conta que viveu uma adolescência de restrições, e para ela, a pior delas foi a de não poder ser quem era. Hoje, formada em direito, longe do convívio da igreja e morando em Salvador, Milla conseguiu reunir forças para denunciar abusos que sofreu ao ser orientada a passar por "terapias de conversão sexual", conhecidas popularmente como "cura gay".

Ela contou sua história em um vídeo publicado em seu Instagram, na última semana.

Em entrevista à Universa, ela deu alguns detalhes sobre sua história. Ela conta que quando tinha 13 anos, o pastor que cuidava dos jovens, a chamou para conversar.

Não sei como ele sabia que eu era lésbica, acho que eles devem ficar em cima, muito de olho — e acho que eu 'dava pinta', por não ser uma criança muito feminina. Sei que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas é como pensam. Talvez o pastor tenha blefado, e eu caí. Fiquei muito nervosa quando ele começou a falar sobre homossexualidade comigo. A aproximação foi como se ele fosse um amigo mesmo, afirmando que também já tinha tido desejo homossexual, mas que não era mais assim. Lembro de ter chorado bastante. Toda essa história sobre ser 'ex-gay' era muito cotidiano na Igreja".

Milla ainda disse que ficou com bastante medo dos membros da igreja falarem com seus pais e achava que conseguia 'enganar' bem todo mundo. E, apesar de achar que as coisas voltaram a uma certa normalidade, era um cenário atípico de normalizar que ela não poderia ser lésbica.

Não falava sobre isso com ninguém. Guardava como um segredo a sete chaves. Tinha medo de me descobrir, da minha família saber, do pastor contar para outras pessoas. Até hoje não sei se falaram algo para a minha família naquela época".

A mulher conta que sentia muita culpa, e por isso, sentia que nunca tinha decidido nada conscientemente, e sim que decidiram por ela.

Sentia que estava fora da curva e precisava compensar alguma coisa para os meus pais, para a minha família. Tinha que ser uma boa aluna, uma boa cristã. Estava inserida naquele contexto religioso e precisava me esforçar ao máximo para manter os meus pais satisfeitos, para que eles não se decepcionassem comigo. Era uma coisa de lavagem cerebral que faziam".

Ela contou que começou a negar a sua sexualidade, e segundo ela a Igreja sabe aproveitar as vulnerabilidades das pessoas, onde, utilizando palavra de apoio, um salmo mais bonito, acabam controlando o seu coração.

A partir dos meus 16 anos comecei a frequentar cursos que prometiam 'a cura gay'. Eles mercantilizam isso, vendem uma suposta 'cura'. Eram coisas que não estavam necessariamente ligadas à Igreja, eram mais autônomas, mas eram as pessoas da Igreja que me recomendavam. 'Vai fazer esse curso, será bom para você', me diziam. Era uma atmosfera de repreender a homossexualidade o tempo todo. Eles falam sobre o 'demônio da homossexualidade', como se tivesse um demônio em você que tem que ser expulso".

Em um dos cursos que fez, da Andréa Vargas, ela contou que lá é praticamente a promessa de que você será curado. O curso acontecia durante os fins de semana e as palestras tinham muitos testemunhos de 'ex-gay'. Havia muitas orações individuais e como sempre, reprendendo o 'demônio da homossexualidade'.

Passei por outros que falavam sobre fazer um jejum de 21 dias, como forma de me curar. O jejum é uma prática que eles dizem ser prevista na bíblia, e serve para o corpo ficar fraco mesmo, e assim mais "vulnerável ao agir de Deus". Na hora, não me sentia mal com esses cursos, mas quando eu chegava em casa e me deparava com quem eu realmente era, com os meus instintos, eu sofria. Eles me pegaram pela culpa. Sentia muita culpa, chorava, queria dormir. Tive um episódio de depressão medicamentosa horrível porque tomava remédios fortes para dormir, para ficar apagada", contou ela.

Ela relembrou que, uma vez um pastor chegou abordando-a dizendo que, o caminho para os homossexuais era o celibato. Ainda contou que, eles acreditam que conseguem converter as pessoas a heterossexualidade, mas o que são mais 'liberais', acreditam que o celibato para o resto da vida resolve tudo. Eles aceitavam que não conseguiam mudar as pessoas, então eles falavam isso. E, segundo eles, Deus odeia o pecado, mas o pecador que se abstém estará a salvo.

Milla relatou que não teve uma adolescência normal. Conta que não tinha costume de dormir fora de casa e que mesmo na faculdade, ela nunca foi em uma festa universitária - só depois que saiu da igreja.

A Igreja dá um jeito de você virar a sua vida só para aquilo ali. Eu até era convidada para eventos e aniversários, mas todo mundo da igreja abominou que eu frequentasse o que eles chamam do 'mundo'. Ouvir música do 'mundo', ir em festas do 'mundo', ter amizade com pessoas 'do mundo' ".

Em 2017, um amigo dela se suícidou. Segundo ela, a mãe dele també, era de uma igreja cristã e ambos estavam passando pelo mesmo processo de 'cura gay'. Ela conta que a situação foi tão agressiva que a mente dela apagou detalhes. E, alguns anos depois, ela viveu sua primeira tentativa de suicídio.

Aconteceu depois de seis meses de formada. Ainda não tinha saído da Igreja, mas vivia um ócio terrível. Não tinha emprego fixo ainda e fiz uma viagem para Salvador. Baixei um aplicativo de relacionamento e conheci uma menina. Saí com ela e, depois, tive um surto de culpa por ter ficado com uma mulher pela primeira vez, por ter me permitido".

Até aquele momento, ela não tinha ficado com outras meninas. Naquele dia, ela acordou no hopistal.

Fui encontrada no mar. O meu pai veio me buscar com o pastor no carro. Fui inundada de preocupação, maquiada de amor, cuidado e carinho".

Segundo ela, após essa situação ela começou a fazer terapia com uma profissional, pois, até então ela só tinha feito terapia de conversão sexual, onde, o psicólogo era cristão e a terapia era de uma psicologia cristã. 

No final daquele ano, ela conta também que voltou a se comunicar com a menina que tinha saído e seus pais acabaram descobrindo. Na mesma noite, arrumou suas malas, pois estava cansada de viver uma mentira e no dia seguinte foi embora para Salvador, onde rompou tudo de uma forma 'bruta'.

Rompi um pouco até com a família porque tive que me afastar, morar na casa dos meus amigos. Os meus familiares falaram para mim que minha mãe era muito forte, como se a minha mãe tivesse perdido uma filha, como se a vítima fosse minha família e não eu".

Depois de um tempo, ela foi retomando o contato com sua família, onde seus pais também estavam passando por um processo de desconstrução.

No ano passado, passei por uma segunda tentativa de suicídio. Muita gente não entende, falam que eu já estava vivendo a vida a minha maneira, como se estivessem cobrando que, por eu ter saído da Igreja, automaticamente tudo ficou perfeito. Foi pior ainda, porque eu não sabia o que fazer. Tinha ideias de amores abusivos, tóxicos. Qualquer migalha de amor era amor, já que antes eu não podia ter nada".

Depois disso, Milla foi internada em uma clínica. Um psiquiatra a diagnosticou com transtorno pós-traumático.

Nunca tive intenção de buscar denunciar essas coisas antes, até porque achava que eu era a errada, mas agora estou mais disposta. Só vou me sentir preenchida quando sentir que o mínimo de Justiça está sendo feita, como a abertura de um inquérito para que me ouçam ou a criminalização da 'cura gay'. Tenho muito a dizer. Estou no caminho e não vou parar".

Sobre o curso de cura gay de que Milla participou, a equipe de Andréa Vargas informou que a missionária não realiza nenhum curso de conversão sexual.

Confira a publicação de Milla.

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