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Uma Nova Maré Rosa Pálida?

Uma Nova Maré Rosa Pálida - Imagem: Freepik
Uma Nova Maré Rosa Pálida - Imagem: Freepik

Marcus Vinícius De Freitas Publicado em 10/08/2022, às 08h59


As eleições de quadros políticos mais à esquerda na América Latina parecem revelar uma repetição da Maré Rosa observada nas décadas de 1990 e 2000 na região. A Maré Rosa, observada naquela época, era resultante de um desgaste das medidas implementadas pelo Consenso de Washington, um conjunto de recomendações de política econômica, estabelecidas pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, na década de 1990, sob uma perspectiva neoliberal, que objetivavam fortalecer a atuação do livre mercado, abertura ao comércio global, além da redução do intervencionismo do Estado na economia doméstica.

A Maré Rosa atingiu Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela, que, em processos eleitorais, migraram a um espectro ideológico mais à esquerda. Com isto, a América Latina reverteu o relógio da história e, em muitos casos, se teve a impressão de que o Muro de Berlim ainda continuava em pé. Apesar do apoio popular inicial, estes governos não souberam enfrentar os desafios resultantes das crises financeiras de 2007 e 2008, o que evidenciou a incompetência desses governos em momentos de crise.  Os governos da época se esqueceram de um importante provérbio chinês: “governar um grande país é como fritar um pequeno peixe”. É necessário diligência e o máximo cuidado para não passar do ponto, atentando-se aos mínimos detalhes e jamais ser negligente no trabalho. A tragédia só não foi pior, no entanto, devido à ascensão da China como potência econômica, o que provocou um aumento substancial dos preços das commodities fornecidas pela América Latina.

À exceção da Venezuela, as instituições democráticas existentes asseguraram a contenção de eventuais arroubos autoritários. No entanto, a continuidade de medidas equivocadas implementadas pelos governos à época gerou um desgaste enorme dos partidos políticos no poder e ensejou o ostracismo eleitoral destes quadros em eleições posteriores. Ademais, os países se encontravam infestados por escândalos de corrupção, má gestão e crescimento econômico pífio.

Diante desse quadro, grupos mais à direita do espectro político ascenderam ao poder. Sob a promessa de eliminar os equívocos do passado, a esperança inicial e o voto de confiança logo se converteram em dúvida. A distância do poder por tanto tempo trouxe nesta ascensão da direita uma quantidade de indivíduos dos mais variados matizes, com uma prevalência dos mais radicais (e desinformantes) no discurso político. Nunca tantas teorias conspiratórias abundaram como neste período. Além disso, surgiram grupos extremamente diversos e antropofágicos dentro da própria direita. O radicalismo irracional de alguns estimulou uma ojeriza popular aos partidos à direita do espectro político. Dentre as famosas teorias conspiratórias, vale recordar a do Comuna-vírus, o Vírus Chinês, dentre outras tantas, que ensejaram o aparecimento de grupos retrógrados, ignorantes e alheios às realidades científicas. Numa generalização reputacional, a esquerda logrou carimbou ser de direita apoiar teorias alienadas, terraplanistas, genocidas, contrários à ciência e anti-vacinas. A pandemia revelou a incapacidade destes novos governos de direita em administrarem esse período turbulento, agora piorado diante de um quadro adicional de instabilidade resultante da Guerra da Ucrânia e do desabastecimento global, com impacto substancial na elevação dos níveis inflacionários.

Com isto, houve um aumento de governos eleitos à esquerda do espectro político. Da posse de Joe Biden nos Estados Unidos, Xiomara Castro (esposa do deposto Manuel Zelaya) em Honduras, Alberto Fernandez na Argentina, Pedro Castillo no Peru, Gabriel Boric no Chile e de Gustavo Petro na Colômbia, a percepção inicial era de que a Maré Rosa, ainda resiliente, conseguira manter-se ativa no hemisfério ocidental e, diante da experiência frustrada com a direita, havia retornado com intensidade.

Passado o fim da lua de mel destes governos, a dura realidade da situação econômica global assentou-se e a maioria destes governos tem-se comprovado incapaz de resolver os desafios impostos pela dinâmica global atual. E, diferentemente da Maré Rosa anterior, a situação econômica distinta das décadas de 1990 e 2000 deverá implicar mandatos reduzidos ou menor sucesso eleitoral. O grande desafio desta nova Maré Rosa, que certamente está mais pálida que a anterior, é entregar resultados efetivos que comprovem ser melhores do que os governos mais à direita que os precederam.

O maior desafio de todos – não importa a coloração ideológica – é tentar reverter o cenário de uma América Latina que caminha rapidamente a mais uma década perdida. Os governantes na América Latina se perdem mais em discussões ideológicas inúteis pré-queda do Muro de Berlim e não dedicam o tempo necessário à manutenção do crescimento econômico estável com reformas que melhorem, efetivamente, a qualidade de vida da população, além do preparo constante para as adversidades que sempre existirão e advirão. A América Latina deve buscar o crescimento econômico, incrementar a renda per capita, e aumentar a vitalidade do crescimento sólido, por meio do impulsionamento industrial e da urbanização saudável dos países.

A Deng Xiaoping se atribui uma frase: “Não interessa se o gato é branco ou preto, o que importa é que ele mate o rato”. Numa América Latina que tem sofrido tantas décadas perdidas por discussões ideológicas inutéis e que se vê patinando sem avançar, poderíamos parafrasear e dizer: Não importa se a coloração política é rosa ou azul, o que importa é que ela melhore a vida de todos.   Esse tipo de pragmatismo é essencial para virarmos a página e passarmos a debater o que é, de fato, importante, para todos.

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