Diário de São Paulo
Siga-nos

Roberto Livianu: AÇAÍ NA CUECA

Tico era daquelas pessoas populares, que facilmente se conectava às demais por onde passava. Caboclinho simples do interior. Fala mansa, cultura pouca,

Roberto Livianu: AÇAÍ NA CUECA
Roberto Livianu: AÇAÍ NA CUECA

Redação Publicado em 25/10/2020, às 00h00 - Atualizado às 08h54


AÇAÍ NA CUECA

Tico era daquelas pessoas populares, que facilmente se conectava às demais por onde passava. Caboclinho simples do interior. Fala mansa, cultura pouca, esperteza muita. Filho de boias-frias, sempre teve vida simples, ao lado de seus seis irmãos, no casebre de dois cômodos na pequena e pobre Vila Alba, no alto Araguaia.

Por onde ia, formava rodinha em volta para ouvi-lo. Ele tinha carisma. Logo, as velhas raposas da política perceberam que estavam diante de um personagem útil para os escusos e pouco republicanos objetivos de poder na região.

Tico, sem dificuldades se elegeu Deputado Federal. Passa a ser cortejado como nunca tinha sido antes na vida. Era convidado para festas, todos o cumprimentavam com entusiasmo e ineditamente começou a fazer sucesso com as mulheres.

O novo poder chegou em sua vida vertiginosamente. Permitiu-se tutelar pelos líderes do partido e Tico começou a ser incumbido de apresentar emendas parlamentares por determinação deles, que diziam a ele que aquilo se referia a obras importantes para o progresso de Vila Alba, começando Tico a receber maços de dinheiro vivo, que jamais recusou.

Quando se deu conta, estava enredado num sofisticado esquema, do qual se beneficiava e em razão do que se tornou um homem rico, mesmo sabendo que a pobreza se mantinha intacta em seu grotão de origem. Os recursos das emendas que apresentava nunca chegavam ao destino.

Numa tarde, ao saber que a Polícia viria à sua casa fazer uma busca, correu para se livrar das evidências. Mas ainda restavam os trinta e três mil reais do “açaí” (codinome da propina). Tinha acabado de receber o dinheiro e acomodou os maços de notas de 200 no interior da cueca, alguns deles nas nádegas, diante da convicção de que a Polícia não chegaria ao ponto de querer fazer uma revista íntima.

Mesmo nervoso, recebeu os policiais, mas o pior aconteceu e Tico exposto em rede nacional de TV. Resolveu esperar alguns dias para ver se a poeira baixava e recebeu instruções de seus advogados para gravar vídeo em tom emocional, quase choroso, dizendo que o dinheiro se destinaria a pagar alguns valores devidos a compadres.

A leitura gaguejada do texto que Tico não conseguiu decorar denunciou a artificialidade da cena, que revoltou as pessoas ainda mais. Ele percebeu que não se saiu bem, mas estava tranquilo, repetindo aos amigos: tudo se resolverá com o próximo. Ninguém compreendeu até o surgimento do próximo escândalo, que absorveu toda a atenção da opinião pública, deixando Tico coberto pela nuvem do esquecimento.

Roberto Livianu é procurador de Justiça em SP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e escritor. Autor de 50 Tons da Vida.
Instagram @robertolivianuoficial

Compartilhe  

Tags

últimas notícias