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Forçadas à escravidão sexual pelo Estado Islâmico, mulheres yazidi se reúnem com os filhos dois anos após serem libertadas

FRONTEIRA DE FAYSH KHABUR, IRAQUE — As nove jovens mães correram para os escritórios espartanos de um posto de fronteira na Síria, em busca dos filhos e

Forçadas à escravidão sexual pelo Estado Islâmico, mulheres yazidi se reúnem com os filhos dois anos após serem libertadas
Forçadas à escravidão sexual pelo Estado Islâmico, mulheres yazidi se reúnem com os filhos dois anos após serem libertadas

Redação Publicado em 16/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 13h47


Elas foram forçadas a escolher entre recuperar as crianças, que estavam num orfanato na Síria, ou ficar em sua comunidade no Iraque

FRONTEIRA DE FAYSH KHABUR, IRAQUE — As nove jovens mães correram para os escritórios espartanos de um posto de fronteira na Síria, em busca dos filhos e filhas levados delas dois anos atrás, crianças que pensaram que nunca mais veriam.

As crianças, perplexas, vestindo jaquetas novas do orfanato de onde tinham vindo, eram em sua maioria jovens demais para se lembrar de suas mães. Eles começaram a chorar quando as mulheres as abraçaram e beijaram, e as levaram para longe dos funcionários do orfanato, que eram os únicos cuidadores que elas conheciam.

— Fiquei muito feliz, mas foi um choque para nós duas — disse uma mãe, que sonhava em ver sua filha novamente há quase dois anos. — Ela não está acostumada comigo ainda.

A menina tem agora 2 anos e meio.

A operação secreta na fronteira entre a Síria e o Iraque há duas semanas, testemunhada por jornalistas do The New York Times, foi até agora o único reencontro de mulheres yazidi do Iraque e os filhos que tiveram enquanto escravizadas sexualmente e estupradas por seus sequestradores do Estado Islâmico.

A situação dessas mulheres, que sobreviveram a horrores quase inimagináveis em cinco anos de cativeiro, é uma das muitas notas de rodapé trágicas na história da conquista de grandes áreas do Iraque e da Síria pelo Estado Islâmico em 2014.

Para elas, a história está longe de terminar.

Para a traumatizada comunidade yazidi, uma pequena minoria religiosa do Norte do Iraque, as crianças são um elo direto com os combatentes do EI que massacraram milhares de yazidis e capturaram mais 6 mil. Os anciãos yazidi disseram que não aceitariam as crianças de volta na comunidade, e um deles disse que as crianças corriam o risco de serem mortas se suas mães as trouxessem para casa.

Quando as jovens foram libertadas com a queda do último território do EI na Síria, dois anos atrás, elas enfrentaram uma escolha dolorosa: se quisessem voltar para suas famílias no Iraque, teriam que deixar seus bebês para trás. Muitas foram informadas, incorretamente, de que poderiam visitar seus filhos.

Agora elas foram forçadas a escolher novamente. As mulheres que cruzaram a fronteira para a Síria tiveram que cortar os laços com seus pais, irmãos e os vilarejos que chamavam de lar se quisessem se reunir com seus filhos novamente.

— Ninguém pode realmente entender o grande passo que essas mulheres deram, quais riscos estão assumindo, como são incrivelmente corajosas — disse a doutora Nemam Ghafouri, uma médica iraquiana-sueca que foi fundamental na transferência.

Cerca de 30 outras crianças, cujas mães estavam com muito medo de pedi-las de volta ou decidiram não recuperá-las, permanecem no orfanato no Nordeste da Síria.

Foi uma escolha angustiante para as mulheres, muitas das quais eram crianças quando foram sequestradas por combatentes do EI. Nenhuma das mulheres poderia dizer às suas famílias que estava indo embora, talvez para sempre, por medo de comprometer a operação.

— Estou chorando há três dias — disse uma das mulheres que, para se juntar à filha de 5 anos, deixou a mãe idosa para trás. — Eu sinto que isso mataria minha mãe. Ela é mãe. Ela morreria por mim assim como eu morreria por minha filha. Esta é uma situação muito difícil para mim.

Por enquanto, as nove mulheres e 12 crianças estão em um esconderijo em um local não revelado no Iraque. O refúgio em um país ocidental lhes foi prometido pelos organizadores da reunião, e elas esperam desesperadamente que outros países as recebam também. Cerca de 20 mães com filhos no orfanato sírio estão observando para ver como elas se saem.

O New York Times concordou em adiar a publicação da reportagem sobre a operação até que as mulheres e seus filhos estivessem seguros, e não as está identificando para sua proteção.

Um ex-diplomata dos EUA, Peter W. Galbraith, planejou a reunião, pedindo a ajuda de governos antes indiferentes ao drama. Galbraith, que tem laços estreitos com as autoridades curdas no Iraque e na Síria, disse que passou mais de um ano tentando obter aprovação para permitir que algumas das mulheres recuperassem seus filhos e os trouxessem para o Iraque, uma missão atrasada pela pandemia.

O orfanato fica em uma área do Nordeste da Síria controlada pelos curdos. A província de Sinjar, de onde vêm os yazidis, fica do outro lado, no Iraque.

Galbraith disse que um funcionário não identificado da Casa Branca ajudou a superar os obstáculos finais com uma ligação para um general curdo-sírio que é aliado dos EUA. O Conselho de Segurança Nacional não respondeu a um pedido de comentário.

Para as mulheres, o pesadelo começou quando as forças do Estado Islâmico varreram o Norte do Iraque em 2014, declarando o território um califado islâmico. O grupo terrorista considera os yazidis pagãos. Quando os combatentes do EI chegaram ao território yazidi em agosto daquele ano, eles separaram os homens e os meninos mais velhos e massacraram até 10 mil deles no que as Nações Unidas e o Congresso declararam um genocídio.

Cerca de 6 mil mulheres e crianças foram capturadas e muitas foram vendidas aos combatentes do EI. Elas foram tratadas como bens descartáveis, repetidamente estupradas, trocadas e vendidas à vontade.

Quando o EI foi expulso da Síria no início de 2019, a maioria das mulheres yazidi foi libertada e levada com seus filhos para casas de recuperação. Os anciãos yazidi lhes disseram que poderiam voltar para casa, mas que deveriam deixar os filhos para trás. Muitas das crianças foram levadas para o orfanato administrado por curdos.

Algumas mulheres que não foram identificadas como yazidi. Agumas que esconderam sua etnia para manter seus filhos foram levadas para al-Hol, um campo de detenção esquálido no Nordeste da Síria para mulheres e filhos de combatentes do EI. Apesar das condições do acampamento, a mulher com a criança de 2 anos e meio fingiu ser árabe para que pudesse ficar lá com ela.

Durante os últimos dias do califado, quando ataques aéreos liderados por americanos estavam atingindo Baghuz, na Síria, e ela foi ferida por estilhaços, ela lutou para manter viva sua filha pequena. Ela a alimentou de farinha misturada com água para evitar que morresse de fome. Ela costurava roupas de bebê com tecido cortado de seus próprios vestidos.

Ela estava determinada a manter a criança que ela lutou tanto para manter segura. Mas, depois de seis meses, ela foi forçada a admitir que era uma yazidi. Ela foi então levada para a casa de recuperação, mas se recusou a sair sem a filha.

Sua família implorou que ela voltasse.

— Minha família ligou e disse: “Basta voltar, e você pode voltar e vê-la” — disse a mulher.

Após três meses, ela concordou e voltou para Sinjar. Mas, como as outras mulheres, sua família e a comunidade yazidi não permitiram que ela visse a filha novamente.

As mulheres não tinham permissão para falar com seus filhos por telefone. A equipe do orfanato costumava enviar mensagens de texto para as mulheres com fotos e vídeos das crianças, mas parou no ano passado depois que os anciãos yazidi pediram.

Quando as fotos pararam de chegar, as mulheres temeram que algo terrível tivesse acontecido com as crianças. Algumas disseram que queriam se matar.

— Eu sou a mãe dela. Tenho que cuidar dela — disse a mulher com a filha de 2 anos e meio. O pai da menina e seus parentes foram mortos na Síria, disse ela. — Tudo que ela tem sou eu. Quem se importa com o pai?

Os anciãos e líderes religiosos yazidi se preocupavam com os pais.

Trazer os filhos de terroristas do EI para Sinjar “destruiria a comunidade yazidi”, disse Baba Sheikh Ali Elyas, a principal autoridade religiosa yazidi, em uma entrevista esta semana.

— É muito doloroso para nós. Os pais dessas crianças mataram os pais desses sobreviventes. Como podemos aceitá-los?

Além disso, a lei iraquiana especifica que o filho de pai muçulmano é também um muçulmano, portanto os filhos não podem ser considerados yazidi. A fé yazidi não permite convertidos, mesmo que a lei iraquiana permita conversões do islamismo.

Irritado com o que vê como um foco internacional em algumas mulheres yazidi, quando cerca de 3 mil yazidis ainda estão desaparecidos e mais de 140 mil estão definhando em campos de deslocados, ele disse:

— Os yazidis são todos órfãos. Ninguém está cuidando de nós.

De fato, seis anos depois que o EI foi expulso de Sinjar, a região ainda está crivada de valas comuns não escavadas e casas danificadas e destruídas.

— As crianças devem ser cuidadas por organizações de ajuda em outros países — disse Baba Sheikh Elyas.

Se as mães quisessem ir para outros países com os filhos, disse ele, ninguém as impediria.

Outro líder yazidi, o príncipe Hazem Tahsin Bek, disse que as crianças correriam perigo se voltassem com suas mães.

— As famílias podem tolerar as mulheres, mas não suportam os filhos — disse ele.

Questionado se isso significava que as crianças poderiam ser mortas, ele disse que era uma possibilidade.

Quando uma das mulheres ligou para sua família esta semana para dizer que estava com sua filha e esperava que a família as aceitasse, um de seus irmãos as ameaçou.

— Espero que o governo encontre um lugar seguro para nós — disse ela.

Nadia Murad, uma advogada yazidi que ganhou o Nobel da Paz em 2018, disse acreditar que as mulheres deveriam ter permissão para decidir se querem se reunir com seus filhos.

— Elas não tiveram escolha quando foram levadas para o cativeiro — disse. — Elas não tinham escolha em nada disso, e precisam obter ajuda e decidir o que querem.

Antes de as mulheres embarcarem na viagem para resgatar seus filhos, Galbraith disse a elas que outros países as acolheriam, perspectiva que está longe de ser garantida.

No abrigo, alguns dias depois, o local ressoou com os gritos e risos de crianças pequenas, todas com menos de 6 anos. Algumas das mães os observavam preocupadas, ainda com medo do que poderia acontecer com elas.

Várias mulheres disseram que esperavam que pudessem ser transferidas para um terceiro país juntas.

A maioria, mas não todas as crianças, estava começando a se relacionar com suas mães.

A mãe da criança de 5 anos disse que ainda estava lutando para que a menina a tratasse com mais calor. A menina chorou de terror ao ser tirada do orfanato. Mas a mulher disse que estava determinada a construir uma nova vida para elas.

— Ninguém mais pode nos fazer viver longe uma da outra — disse ela.

De repente, a mulher com o filho de 2 anos e meio gritou.

— Ela disse “mamãe”! — a mulher exclamou. Ela se inclinou na direção da menina vestida de rosa e a incentivou a repetir: “Mamãe”.

Por O Globo

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