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Dia Nacional da Visibilidade Trans

"Não podia mais oprimir quem eu era de verdade", relata Juana Ocio sobre quando se assumiu trans

Ma Zink, Juana Ocio, Miles Espadoto, Stefan Costa e Nathan Albrecht detalham suas histórias e dificuldades ao Diário de São Paulo no Dia Nacional da Visibilidade Trans

Em 29 de janeiro de 2004, em Brasília, no Distrito Federal, foi organizado um ato nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito” - Imagem: reprodução/Arquivo pessoal da entrevistada
Em 29 de janeiro de 2004, em Brasília, no Distrito Federal, foi organizado um ato nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito” - Imagem: reprodução/Arquivo pessoal da entrevistada

Thais Bueno Publicado em 26/01/2023, às 13h58


O Dia Nacional da Visibilidade Trans é comemorado no dia 29 de janeiro. Mas por que exatamente este dia e não qualquer outro? Em 29 de janeiro de 2004, em Brasília, no Distrito Federal, foi organizado um ato nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”.

A ação ficou tão marcada na história do movimento contra a transfobia que a data foi escolhida como o Dia Nacional da Visibilidade Trans.

A data fala por si só: é uma forma de celebrar, reafirmar e lutar pela garantia dos direitos das pessoas trans.

Embora o dia 29 seja de fato o Dia Nacional da Visibilidade Trans, foi definido que o mês de janeiro fosse nomeado como “Janeiro Lilás” e totalmente dedicado à busca de visibilidade para os transexuais e travestis.

Dados preocupantes

Publicada em janeiro de 2023, uma reportagem do veículo Folha de São Paulo mostrou que o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo inteiro, apesar de a transfobia ser crime no país deste 2019.

A estatística se torna ainda mais agressiva quando percebe-se que essa é a 14ª vez consecutiva que a nação se encontra no topo do ranking. A pesquisa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelou, na última quinta-feira (26), que 131 indivíduos foram mortos em 2022.

Segundo o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que checa dados globais levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos os assassinatos registrados aconteceram na América do Sul e Central, sendo que 33% deles ocorreram no Brasil.

Além disso, dados do Mapeamento de Pessoas Trans na Cidade de São Paulo, publicado em 2021, revelaram que 58% dos entrevistados – mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas não-binárias – ainda realizam trabalho informal ou autônomo, de curta duração e sem contrato, sem carteira de trabalho assinada. Vale mencionar que 1788 pessoas foram entrevistadas.

Por conta disso, durante todo o mês, a campanha do “Janeiro Lilás” procura incentivar a sensibilização da sociedade, na busca de incentivar o conhecimento e reconhecimento das identidades de gênero, com o objetivo de combater os estigmas e a violência sofridos pela população transexual e travesti.

Registro feito no Dia Nacional da Visibilidade Trans no ano de 2018, em Brasília. Imagem: reprodução/Flickr - Mídia Ninja
Registro feito no Dia Nacional da Visibilidade Trans no ano de 2018, em Brasília. Imagem: reprodução/Flickr - Mídia Ninja

Relatos

Em entrevista exclusiva ao Diário de São Paulo, Ma Zink, 35, que trabalha como ator e dublador e se identifica como uma pessoa trans não binária, classificou a data como sendo de “extrema importância para a visibilidade da causa e da nossa própria visibilidade como pessoas que sofrem um altíssimo índice de violência de uma sociedade que é desde sempre binária e transfóbica”. 

Utilizando os pronomes Ele/Dele, Ma iniciou a descoberta de sua sexualidade aos 20 anos e, na época, se identificava como uma mulher lésbica. De acordo com suas próprias palavras, a conversa inicial com seus familiares foi um tanto quanto complicada, já que era de uma cidade do interior de São Paulo.

“Passado esse primeiro momento, acho que eu e minha família (meu pai, minha mãe e meu irmão) fomos saindo juntos do armário", destacou. Segundo ele, sua mãe acabou se tornando militante da causa LGBTQUIA+ e, consequentemente, teve a mente aberta para novos questionamentos.

“O processo de entendimento da minha não binariedade foi e ainda é mais tortuoso, porém menos solitário, pois conto muito com o apoio deles”. 

Juana Ocio, de 20 anos de idade, se identifica como mulher trans e trabalha hoje como criadora de conteúdo para o TikTok. Ela aprecia muito o Dia Nacional da Visibilidade Trans. “Eu sou muito grata a essa data, não pela busca de respeito dos demais, mas em respeito a todas que hoje já não estão mais aqui, que correram pra gente poder ter o mínimo de respeito hoje em dia”.

Utilizando os pronomes Ela/Dela, deu início ao seu processo de transição quando tinha apenas 15 anos, momento em que percebeu que “não podia mais oprimir quem eu era de verdade”. Foi nessa época que começou a deixar o cabelo crescer, mas ainda não tinha tido muito contato com roupas e acessórios femininos por medo: de repressão, de preconceito, de violência.

Ao contrário de Ma Zink, ela não pôde dizer que teve o apoio da maioria de seus parentes durante o processo de identificação e transição.

“Nunca nem tive uma conversa formal com eles sobre o assunto, porque eu cresci ouvindo coisas do tipo ‘eu prefiro um filho morto do que um filho viado’. Meu apoio familiar vem somente de algumas primas e de pessoas de fora, como amigos e pais de amigos”.

Sobre os preconceitos que já enfrentou, Zink deu uma resposta sensível, mas ao mesmo tempo muito forte.

“Eu sou uma pessoa trans não binária que me identifico mais com algumas construções do universo masculino. Mas meu corpo ainda segue o padrão daquilo que é considerado feminino. Não tenho barba, tenho seios, tenho 1,58m. Nosso país ainda é um país binário. Tenho dificuldade de me identificar publicamente como uma pessoa trans porque automaticamente já me perguntam sobre hormônios, sobre operações”.

“Encontro muita dificuldade com respeito aos meus pronomes, mesmo eu insistindo no artigo masculino em todas as minhas frases. Eu não sou só meu corpo. Eu sou minha identidade, eu sou muito mais do que o meu corpo diz numa primeira leitura. A medicina também é uma área que parece estar zero preparada para a não padronização da saúde e dos corpos. Me pego muitas vezes negligenciando a minha saúde por medo de ser desrespeitado numa clínica, num consultório, como já aconteceu inúmeras vezes”, continuou.

Ma Zink. Imagens: Arquivo pessoal
Ma Zink. Imagens: Arquivo pessoal

Juana, por sua vez, descreveu um momento em que foi muito feliz durante seu processo de transição. “Com uns 18, que foi quando eu entrei na faculdade, eu comecei de fato a me dedicar ao meu eu, foi lá onde eu experimentei sair pela primeira vez com um short jeans, um cropped, foi uma experiência incrível. Me senti livre”.

Contudo, nem tudo são flores. Ela também relatou um episódio terrível de preconceito pelo qual teve que passar. “Em uma certa festa que eu fui, me barraram de usar o banheiro feminino e aquilo me fez chorar a noite inteira. Foi ali que eu vi que não seria tão fácil ser quem eu era”.

A jovem destacou outra dificuldade das pessoas trans: acessibilidade de remédios para a terapia hormonal. “Não é toda cidade que possui ambulatórios para pessoas trans e nem quando ‘vc’ decide comprar os medicamentos, ‘tá’ sempre em falta nas farmácias”.

Ao fim do bate-papo, quando Ma foi questionado se o aumento recente na visibilidade da luta das pessoas trans e não binárias traz resultados concretos para a vida, avaliou que, no que diz respeito à sexualidade, a sociedade já avançou muitas casas.

No entanto, ressaltou que as questões de gênero ainda são pouco discutidas.

“A palavra minoria traz consigo a ideia de que somos pequenos, de que somos poucos. E não somos. Discutir gênero é discutir diversidade de corpos e de identidades. E o mundo é muito mais diverso do que padronizado. As coisas têm melhorado, mas muitas pessoas trans e travestis ainda morrem neste país. Então ainda falta bastante”.

Ocio também destacou algumas coisas sobre o tema. “Eu acredito que as pessoas conseguem sim mudar se elas quiserem, mas não é o caso. Elas gostam de nos verem pra baixo, fazem questão de usar o pronome errado, até amigos bem próximos meus já me trataram no masculino”.

Assim como Zink, ela alega que existem sim algumas conquistas, mas que ainda falta muito para que as pessoas trans, travestis e não binárias sejam de fato respeitadas.

“A gente vive em uma corrida, na qual as pessoas cis e héteros tem uma bicicleta e a gente ‘tá’ de mãos e pés amarrados, sabe?! É uma luta injusta demais, mas aos poucos vamos conseguir pelo menos um pedacinho de uma vida digna”.

Juana Ocio. Imagens: Arquivo pessoal
Juana Ocio. Imagens: Arquivo pessoal

Uma das grandes dificuldades que pessoas trans, travestis e não binárias enfrentam é o relacionamento amoroso com outros indivíduos. Juana deu um depoimento que, embora seja muito triste, pode fazer com que muitas pessoas trans acabem se identificando.

“Em questões amorosas é basicamente uma vida estagnada, as pessoas são bem cruéis e nos tratam como objetos, isso eu estou me referindo, na maioria das vezes, a homens. Mulheres são mais tranquilas para se relacionar, sem essa objetificação sexual. Mas no modo geral, eu particularmente não acredito que vá conseguir ser amada genuinamente por alguém algum dia”.

Miles Espadoto, 20, é estudante da Universidade Federal do ABC (UFABC). Se identifica como pessoa não binária, especificamente âgenero, e faz tratamento hormonal desde dezembro de 2020.

Segundo ele, que teve e segue tendo o apoio da família durante o processo, a maior dificuldade é aceitar que não iria ficar igual a um homem cisgênero. "Você fica nessa expectativa de como você vai acabar parecendo e quando é diferente dá meio que uma sensação de desespero”.

Miles, inclusive, relatou que sua mãe até o levou para fazer um novo RG com seu nome social antes de poder mudar de nome legalmente.

Na entrevista, também contou que, embora não tenha sofrido muito para se relacionar com as pessoas, às vezes também não consegue escapar do estigma deixado pela transfobia.

“Já algumas vezes que pessoas vieram pra mim falar que eu nunca seria um homem e não posso mudar a biologia, aquelas frases de sempre”.

Stefan Costa, 27, é homem negro e trans. A admiração que o criador de conteúdo mostrou pela data é de arrepiar: "Tento sempre me manter politizado, principalmente nas causas em que me afetam diretamente, é algo a se comemorar, mas também de protestar e reivindicar nossos direitos".

Antes de mostrar quem era para o mundo, aos 23 anos, o bacharel em direito procurou, em primeiro lugar, se entender quando ainda era jovem. "Toda pessoa trans passa por um processo de transição, mas o meu começou de dentro para fora".

Quando perguntado se ainda sente a marginalização na pele, não hesitou em responder que sim. "Estando num corpo de pele negra eu sou marginalizado, a gente sabe como a sociedade é racista e antes de me olharem como uma pessoa trans, vão me olhar como uma pessoa negra".

Nathan Albrecht também se identifica como pessoa transmasculina. Ele, que tem 23 anos e trabalha como designer e ilustrador, iniciou seu processo de transição social aos 18.

“Naquela época ainda tinha muitas dúvidas sobre o que era a transmasculinidade. Cerca de um ano depois, eu me assumi como Nathan e comecei a enfrentar todo o processo físico e emocional”.

Durante a resposta, Nathan fez questão de ressaltar o quão importante foi a terapia durante todo o processo de transição. Ele contou que, no fim de 2019, estava completando 20 anos de idade - foi aí que percebeu que seu mundo começou a desabar.

“Minha família não me aceitava, passei por muitos momentos onde pensei em desistir, e no fim de 2019 tive uma tentativa de suicídio, após isso, eu entendi que precisava me afastar do ambiente familiar e encontrar novos lares”.

Depois de passar um bom tempo morando com amigos e namoradas, foi morar sozinho. A reposição hormonal teve início no dia 17 de abril de 2020 (início da pandemia) e seis meses depois, passou pela cirurgia de retirada das mamas. Hoje, ele já está indo para quase 3 anos de hormonização.

Nathan, infelizmente, teve que passar por uma situação contrária a de Miles: tanto a família por parte de pai quanto de mãe repudiaram muito sua transição. “Só depois de alguns meses que eu recuperei o contato com a minha mãe. A família por parte de pai não fala comigo até hoje”.

Nathan Albrecht. Imagens: Arquivo pessoal
Nathan Albrecht. Imagens: Arquivo pessoal

Dois tópicos que o entrevistado pontuou durante a conversa chamaram a atenção. Apesar de ter dito que nunca teve medo de relacionamentos amorosos, afirmou que tem uma certa preocupação com relação ao ambiente profissional, mas tenta se adequar ao local até a medida em que sentir que é saudável.

O segundo ponto discorre sobre a falta de respeito à qual as pessoas trans são submetidas por parte dos profissionais de saúde. “Ainda sofro com profissionais da saúde e tenho plena clareza que existem vários ambientes que fomentam ódio a pessoas como eu”.

Ao fim da conversa, Nathan confirmou o que já foi dito por todos os entrevistados acima. “É perceptível que algumas coisas melhoraram, mas são direitos básicos de qualquer cidadão. E ainda assim, muitas vezes, esses direitos nos são tirados e/ou desrespeitados. A luta é longa! E está só começando”.

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