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‘Foi uma dor na alma’, diz mulher do interior do Pará que foi para SP fazer aborto após estupro

Dados de janeiro de 2021 a fevereiro deste ano mostram que 51,2% dos abortos permitidos por lei acontecem em apenas sete cidades brasileiras, e São Paulo lidera

ABORTO
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Redação Publicado em 09/06/2022, às 00h00 - Atualizado às 10h02


Lúcia*, de 33 anos, descobriu que estava grávida pela primeira vez na vida em agosto do ano passado. A gestação foi fruto de uma violência sexual: embora a relação tenha começado com seu consentimento, o parceiro retirou o preservativo durante o ato e a agrediu. A gravidez, portanto, era decorrente de um estupro e, por lei, poderia ser interrompida por meio de um procedimento de aborto legal.

Mas, após ter o aborto negado em um hospital de Belém, no Pará, Lúcia* teve que percorrer quase 3 mil quilômetros, de avião, para chegar até São Paulo, onde finalmente pôde pôr fim à gestação em um hospital do SUS.

Em entrevista, ela contou o que sentiu ao ter que viajar, sozinha e pela primeira vez em um avião, para conseguir um serviço ao qual tinha direito:

“Foi uma dor na alma. Eu me senti desprezada”, disse.

A capital paulista é a cidade que mais realizou abortos legais entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022, o que condiz com o tamanho da sua população, a maior do país. Mas dados deste período obtidos mostram que 51,2% dos abortos permitidos por lei aconteceram em apenas sete cidades brasileiras, entre elas a capital paulista. Juntas, essas cidades concentram apenas 13,8% da população nacional, segundo estimativa do Instituto Nacional de Pesquisa e Estatística (IBGE) para 2021.

Para especialistas no tema, este dado mostra que o acesso ao serviço de aborto legal no país está excessivamente concentrado em algumas poucas localidades, e que mulheres que vivem em outros lugares acabam tendo que se deslocar por longas distâncias para fazer o procedimento.

A concentração dos serviços em poucas cidades representa uma entre diversas dificuldade que mulheres brasileiras enfrentam para obter o abortamento no país. Apesar disso, uma pesquisa do instituto Datafolha divulgada na última sexta-feira (3) mostrou que a parcela da população que quer proibir aborto em qualquer caso no Brasil caiu de 41% para 32%. Nesta semana, o Ministério da Saúde publicou uma cartilha controversa na qual afirma que “não existe aborto ‘legal’” e defende que os casos em que há “excludente de ilicitude” sejam comprovados após “investigação policial”.

Recusa do aborto legal

Após descobrir que estava grávida, Lúcia* entrou em desespero. Embora a relação sexual que deu origem à gestação tenha começado com seu consentimento, o parceiro a enganou e retirou a camisinha durante o ato.

Essa prática, conhecida em inglês como stealthing, é considerada crime segundo o Código Penal brasileiro. O artigo 215, que trata de violação sexual por meio de fraude, define como crime “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. A fraude, neste caso, seria a remoção do preservativo sem a anuência da parceira.

Apesar de saber que havia sido vítima de violência sexual, Lúcia* só descobriu que poderia ter acesso ao aborto legal depois de entrar em contato com a ONG Milhas Pela Vida das Mulheres, que auxilia mulheres a conseguir acesso ao procedimento no Brasil.

Sob orientação da organização, ela foi da sua cidade, no interior do Pará, até a capital do estado. No entanto, em Belém, ela teve o direito ao aborto negado na Santa Casa do Pará. O g1 entrou em contato com o hospital e com a Secretaria da Saúde do Pará, mas não obteve retorno.

“Me disseram que eu não tinha não tinha direito [ao aborto legal] porque eu não tinha nenhum Boletim de Ocorrência (BO) e não tinha tido nenhum sinal de agressão física. Eles falaram que, para eu fazer esse procedimento lá, eu teria que ter isso”, disse Lúcia*.

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará - santa casa belem — Foto: Cristino Martins/Agência Pará

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará – santa casa belem — Foto: Cristino Martins/Agência Pará

A legislação brasileira, no entanto, não exige registro de ocorrência policial.

“O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses casos, e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento”, afirma a norma técnica do Ministério da Saúde que regulamenta a prática.

Lúcia* passou o dia todo no hospital, onde conversou com uma equipe composta por psicólogo, assistente social e ginecologista. Ao final do dia, ela foi informada, pela médica, que não tinha direito ao procedimento. Ela estava só com a roupa do corpo, e teve que procurar um abrigo municipal para dormir em Belém naquela noite, antes de voltar para sua cidade.

“Eu fui tratada como se eu tivesse querendo fazer algo ilegal, como uma mentirosa”, diz.

A roteirista Juliana Reis, fundadora da organização que ajudou Lúcia*, afirma que 51% das mulheres auxiliadas pela ONG no acesso ao aborto legal não sabiam que tinham direito ao procedimento. A pesquisa foi respondida por 215 mulheres que fizeram a interrupção da gestação com auxílio do grupo.

A organização também ajuda a financiar a viagem de mulheres de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica que decidiram realizar um aborto fora do Brasil.

G1
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