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ÁFRICA

Tempestades raras no Saara criam rios e transformam paisagem

Impacto das tempestades sobre o clima local pode ser duradouro

Tempestades raras no Saara criam rios e transformam paisagem - Imagem: Reprodução / BlueSky / @xykosancho.bsky.social
Tempestades raras no Saara criam rios e transformam paisagem - Imagem: Reprodução / BlueSky / @xykosancho.bsky.social

William Oliveira Publicado em 10/10/2024, às 11h19


Nas últimas semanas, o deserto do Saara, notoriamente conhecido por sua aridez extrema, foi surpreendido por uma rara sequência de tempestades que inundaram suas áreas, transformando o cenário de dunas e palmeiras em verdadeiros cursos d'água.

Em 10 de setembro, as intensas chuvas resultaram em pelo menos 20 mortes no Marrocos e na Argélia, além de causar significativos danos à infraestrutura local, incluindo redes elétricas e de distribuição de água potável. Algumas das regiões afetadas já haviam sofrido com um terremoto no ano anterior, exacerbando os desafios enfrentados pelas comunidades locais.

O fenômeno meteorológico, descrito como uma tempestade extratropical pelos especialistas, é uma ocorrência extraordinária nesta parte do mundo. De acordo com Houssine Youabeb, da Diretoria Geral de Meteorologia do Marrocos, tal nível de precipitação não era registrado há décadas.

"Faz 30 a 50 anos que não chove tanto em um espaço de tempo tão curto", comentou Youabeb.

O impacto das tempestades sobre o clima local pode ser duradouro. A umidade adicional retida no ar pode desencadear mais evaporação e, subsequentemente, novas tempestades nos meses seguintes.

Tradicionalmente, a região desértica marroquina recebe menos de 250 milímetros de chuva anualmente, com certas áreas registrando meros dez milímetros ao longo do ano. Contudo, apenas dois dias de chuvas intensas em setembro já superaram essas médias históricas.

Em Tagounite, localizado a aproximadamente 450 quilômetros ao sul da capital marroquina, foram registrados impressionantes 100 milímetros de chuva em apenas um dia. A abundância hídrica transformou temporariamente o Saara: satélites da NASA capturaram imagens de rios enchendo o outrora seco Lago Iriqui, fenômeno que não ocorria há meio século.

Seca

Após seis anos de severa seca que obrigou ao racionamento de água no Marrocos, essas chuvas providenciais prometem revitalizar aquíferos subterrâneos essenciais para a sobrevivência das comunidades desérticas. Reservatórios na região registraram enchimentos recordes durante todo o mês.

Entretanto, ainda é incerto quanto as chuvas recentes contribuirão para mitigar os efeitos prolongados da seca na área. Conforme análise da NASA, o evento climático atual está relacionado a um ciclone extratropical — ainda mais raro no Saara — originado sobre o Oceano Atlântico e que trouxe consigo umidade desde a África equatorial até o norte do deserto.

A pesquisa conduzida por Moshe Armon, da Universidade Hebraica de Jerusalém, destaca que, entre mais de 38 mil eventos pluviométricos no Saara nas últimas duas décadas, apenas uma minoria ocorreu durante o verão e quase nenhum teve relação com ciclones extratropicais como este.

Porém, estudos adicionais do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Universidade Federal do Alagoas sugerem que ventos persistentes do sudeste e anomalias na temperatura dos oceanos também têm contribuído para essa anomalia climática no Saara e afetam paralelamente a seca na Amazônia.

"Com o [oceano] Atlântico Norte mais quente, ventos alísios [constantes] de sudeste têm mantido a ZCIT [Zona de Convergência Intertropical] muito afastada da Amazônia, inibindo as chuvas e beneficiando o Saara. Esse é apenas um dos impactos indiretos que a posição da ZCIT na África pode ter no clima da Amazônia", aponta o laboratório, ressaltando a complexidade das interações climáticas globais.
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