por Kleber Carrilho
Publicado em 15/07/2023, às 12h55
Nesta semana, perdemos Milan Kundera. Para mim, foi um dos grandes escritores a tratar da relação do indivíduo com os regimes autoritários. Ao mostrar a então Tchecoslováquia durante a cortina de ferro, ele falou de como as vidas, os amores e as perdas conviviam com um regime fechado, sem cor, que tentava controlar corpos e pensamentos.
Um ponto marcante da sua literatura para mim é O Livro do Riso e do Esquecimento, que, no seu início, traz um retrato de como as pessoas sumiam da vida, das imagens e dos livros de História quando passavam a ser vistas como traidoras ou inimigas do regime. Assim como fiz com inúmeros alunos nas últimas décadas, convido você para ler este trecho:
“Em fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald postou-se na sacada de um palácio barroco de Praga para discursar longamente para centenas de milhares de cidadãos que se achavam concentrados na praça da Cidade Velha. Foi um grande marco na história da Boêmia. Um momento fatídico que ocorre uma ou duas vezes por milênio.
Gottwald estava cercado por seus camaradas, e a seu lado, bem perto, encontrava-se Clementis. Nevava, fazia frio e Gottwald estava com a cabeça descoberta. Clementis, cheio de solicitude, tirou seu gorro de pele e colocou-o na cabeça de Gottwald.
O departamento de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da fotografia da sacada de onde Gottwald, com o gorro de pele e cercado por seus camaradas, falou ao povo. Foi nessa sacada que começou a história da Boêmia comunista. Todas as crianças conheciam essa fotografia por a terem visto em cartazes, em manuais ou nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clementis, acusado de traição, foi enforcado. De imediato, o departamento de propaganda fê-lo desaparecer da História e, claro, de todas as fotografias.
Desde então Gottwald aparece sozinho na sacada. No lugar em que estava Clementis não há mais nada a não ser a parede vazia do palácio. De Clementis, só restou o gorro de pele que fora colocado na cabeça de Gottwald.”
Muito antes do Photoshop, das inteligências artificiais, da disseminação das fakenews pelas redes sociais digitais, a verdade era reinventada para se manter o poder. Pessoas eram canceladas, colocadas para fora de uma realidade que só servia para mostrar o que era conveniente.
Milan Kundera, mais do que retratar o seu tempo, foi capaz de mostrar a incapacidade do indivíduo de lutar com as grandes engrenagens. Quando viu que também não sobreviveria, deixou a Tchecoslováquia sob o duro domínio soviético pós-Primavera de Praga para viver na França, onde conseguiu mais liberdade para criar e viver.
Porém, ao nos despedirmos dele, a pergunta que fica é: será que hoje conseguimos fugir dos sistemas que nos esmagam, perseguem e cancelam? Ou eles deixaram de ter fronteiras geográficas e estão em todos os cantos?
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