Diário de São Paulo
Siga-nos
COLUNA

Setenta e duas horas

Imagem: Reprodução | TV Globo
Imagem: Reprodução | TV Globo
Kleber Carrilho

por Kleber Carrilho

Publicado em 10/12/2022, às 09h00


João Bernardo saiu de casa no dia 30 de outubro, para participar de um churrasco na casa do cunhado. Note que, em vez de dizer que a casa é da irmã, ele prefere se referir como a casa do marido dela, afinal, para ele, o homem é o chefe da família e, consequentemente, o dono da casa.

O churrasco foi acontecendo, mas as cervejas passaram a ficar mais amargas na medida em que os resultados da eleição iam sendo divulgados, pouco a pouco, fazendo com que o gráfico da Globo mostrasse a vitória do “Luladrão”, como João Bernardo se refere ao ex e futuro presidente.

Nos grupos de WhatsApp, que não paravam, notícias de que iam questionar o resultado das urnas fraudadas, de que jamais deixariam o “Nove Dedos” (mais uma forma de se referir ao eleito) tomar posse e de que Jair Bolsonaro ia chamar as Forças Armadas para prender todo o mundo, inclusive o Xandão.

João Bernardo, com meia dúzia de Itaipavas na cabeça e mais uns goles no uísque 12 anos do cunhado, decidiu que iria lutar pelo Brasil. Olhou para a mulher e para os dois filhos e entendeu que o lugar dele era mesmo na briga pela liberdade e pela democracia que Bolsonaro representava.

Esperou um pouco para pegar o Uber, que estava no preço dinâmico, com o endereço que já estava gravado: o Tiro de Guerra, já que a cidade não tinha uma unidade militar mais importante. Tinha que dar seu apoio, honrando a memória do pai, que serviu o Exército por um ano durante da Ditadura, e lembrava como a vida era melhor naquela época, com todos nos seus lugares, sem questionamentos daquilo que era certo ou errado.

João Bernardo entendeu que eram somente 72 horas, no máximo, para que tudo estivesse resolvido. Todos os inimigos do Brasil e da família tradicional estariam presos, e ele poderia voltar para a rotina do trabalho-igreja-família-churrasco, com visitas esporádicas  ao Hot Girls American Bar.

As horas se passaram, e foram se multiplicando. O presidente falou em código, que alguns interpretaram de uma forma, outros de outra. O número de manifestantes aumentou na primeira semana, vieram barracas, comida, água, banheiro químico.

O celular pode ser carregado em uma extensão que sai do quartel (se é que podemos chamar um Tiro de Guerra de quartel), e isso o mantém em contato com a verdade e com a família. A mulher tem falado cada vez mais raramente com ele, principalmente quando precisa de mais dinheiro, que tem sido tirado dos investimentos que ainda sobraram depois da tentativa de João Bernardo de ficar rico com a compra de NFTs e criptomoedas indicadas pelo pastor no ano passado.

As vendas, que ainda foram feitas por celular na primeira semana, não estão acontecendo mais, e a loja de peças automotivas está fechada, mas a esperança não acaba.

Ontem, conversei com João Bernardo. Ele segue firme, mesmo com a diminuição dos patriotas que continuam por lá. Pensa de vez em quando em sair, visitar a família, reabrir a loja. Mas acha melhor não se ausentar, porque tem medo de tudo acontecer exatamente na hora em que não estiver no lugar certo.

Todas as noites, João Bernardo sonha com o presidente.

Compartilhe