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A vez do resíduo orgânico nas cidades

por Renato Recife / Rafael Golin 

A vez do resíduo orgânico nas cidades
A vez do resíduo orgânico nas cidades

Redação Publicado em 14/08/2021, às 00h00 - Atualizado às 19h00


por Renato Recife / Rafael Golin 

É comum associarmos a reciclagem com a separação de papel, papelão, vidros, metais e plásticos, a chamada coleta seletiva de secos, iniciada há mais de três décadas no Brasil. Há também um maior direcionamento de ações públicas e privadas voltadas à recuperação destes materiais, seja pelo seu valor de comercialização seja por já existirem cadeias estruturadas, formais e informais, de coleta e transformação em novos produtos.

Mas o fato é que a fração orgânica, normalmente restos de comida e jardinagem, e comumente chamada de lixo comum representa aproximadamente 50% dos 80 milhões de toneladas de resíduo gerado nas cidades brasileiras, segundo o anuário de 2020 da ABRELPE – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, que são, quase que na totalidade, enterrados em aterros ou lixões.

Os orgânicos destinados para aterros sanitários são responsáveis pelas emissões de gases causadores do efeito estufa. Porém quando enterrados em locais inadequados, como aterros controlados ou lixões apresentam também risco de contaminação do solo e água. Após essas estruturas deixarem de operar é necessário, por décadas, fazer o monitoramento e manutenções destas áreas que se tornam inutilizáveis, visto que os resíduos orgânicos ali contidos continuam a emitir gases de efeito estufa e a ter o potencial de contaminar o solo e lençóis freáticos, se não tiverem um acompanhamento técnico rigoroso.

Junte-se a isso o fato que os espaços para construção de novos aterros sanitários, principalmente em megalópoles como São Paulo, são cada vez mais escassos e tem-se o cenário para uma tempestade perfeita ambiental.

É importante ressaltar que este problema não é exclusivo do Brasil. O mundo todo busca novas soluções para dar vazão à quantidade cada vez maior de resíduos orgânicos produzidos, dado o aumento populacional.

Com tudo isso, o leitor já percebeu que encontrar uma alternativa ao aterramento para a fração orgânica dos resíduos urbanos é essencial para um futuro sustentável.

Hoje pauta de todas as discussões sobre resíduos e cidades, a reciclagem da fração orgânica por meio da compostagem para transformá-la em adubo/composto não é uma prática exatamente nova. Na São Paulo do século XIX, era comum que produtores rurais recolhessem restos de alimentos dos restaurantes para serem utilizados como adubo. Por questões sanitárias, devido aos riscos de contaminação dos alimentos produzidos, a prática foi proibida no começo do século XX.

Na década de 1920, desembarcou no Brasil, o sistema italiano de compostagem denominado “célula Beccari”, substituídos posteriormente por outras tecnologias, nos anos 70 e 80, especialmente pelo sistema dinamarquês “DANO”, que operaram até o início dos anos 2000.

Três fatores levaram ao insucesso dos processos e a criação da má fama da compostagem urbana no Brasil: a adoção de sistemas europeus não adaptados ao tipo resíduos gerado aqui e ao nosso sistema de coleta, a ausência de um programa de educação ambiental com a segregação do resíduo coletado para a compostagem e, por fim a ausência de uma política de modernização das usinas de compostagem existentes. Tínhamos unidades de tratamento que geravam mau cheiro excessivo, produziam um adubo de má qualidade e contaminado além do fortalecimento do modelo linear baseado na coleta, transporte e destinação em aterros e lixões.

Na União Europeia, ainda nos anos 90, intensificou-se um movimento coordenado por políticas públicas com enfoque na introdução da coleta diferenciada de orgânicos, isto é, a população separa em suas casas a parte orgânica dos resíduos que também passa a ser coletada separadamente. Além disso, investiu-se na construção de sistemas de recebimento, separação e reciclagem de orgânicos, seja por meio de biodigestores que geram combustível e eletricidade com o resíduo orgânico, seja pela compostagem, que produz adubo para ser usado na jardinagem e na agricultura.

Acompanhando as políticas públicas e iniciativas de educação da população, leis e tarifas de coleta de lixo foram criadas, para estimular a separação correta nas residências e práticas de compostagem doméstica e comunitária, criando sobretaxas para quem deixasse de fazer essa separação (e consequentemente destinasse seus resíduos para os aterros sanitários). Os resultados deste modelo estão no relatório Bio-waste in Europe de 2020, produzido pela European Environmental Agency, que aponta que 42% do resíduo orgânico gerado na União Europeia já possui coleta segregada e são reciclados.

Quando olhamos para os países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, estas discussões vêm ganhando maior atenção nos últimos cinco anos. O cenário da maioria dos países é de taxas de biodigestão/reciclagem de orgânicos inferior a 1%, como visto, por exemplo no plano de gestão de resíduos orgânicos para o período 2020-2040, publicado em 2021 pelo Governo Chileno, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA.

Mas as discussões tem saído dos núcleos ambientais, que apontam a necessidade de mudanças há tempos, e passou a ser debatido de forma mais ampla, com discussões nas câmaras municipais e criação de leis específicas com uma visão voltada ao conceito de economia circular de alimentos. Florianópolis, por exemplo, aprovou lei específica em 2020 para implementar projeto de coleta domiciliar diferenciada em condomínios de resíduos orgânicos para serem compostados.

São Paulo possui programa de compostagem de resíduos de feiras livres e podas de árvores que desviou dos aterros 10.500 toneladas só em 2020. As Prefeituras de Belo Horizonte, assim como São Paulo vem discutindo no legislativo por meio de consultas públicas, eventos e projetos de lei específicos para mudanças na gestão de resíduos orgânicos.

Nos âmbitos federal e estadual, alterações na legislação tem estimulado a compostagem e biodigestão de resíduos orgânicos. O Ministério da Agricultura reclassificou o adubo advindo do resíduo urbano, quando segregado na origem, flexibilizando seu uso na agricultura. O Ministério do Meio Ambiente estabeleceu em 2018 parâmetros para realização de compostagem em larga escala e, em 2021, trouxe novas orientações para uso de composto proveniente de resíduo urbano na agricultura orgânica.

O governo do Distrito Federal flexibilizou o licenciamento de unidades de compostagem para até 20 toneladas/dia e o Governo de São Paulo possui uma legislação simplificada para até 10 toneladas/dia e dispensa de licenciamento grandes geradores que queiram tratar no próprio local até 500kg/dia.

Porém, usando-se como exemplo as lições aprendidas com políticas públicas bem-sucedidas em outros países, a valorização do resíduo orgânico passa por uma mudança cultural que só virá com iniciativas de educação ambiental, no âmbito escolar, dentro do setor público e privado formando profissionais, nas empresas e nas comunidades locais. Ensinar a importância da separação dos resíduos e como destinar é o primeiro e mais importante passo para o sucesso de um programa. O sucesso baseia-se na adoção de diversas práticas em conjunto: compostagem doméstica, comunitária, ações em grandes geradores privados e públicos e um sistema público de coleta que forneça, de maneira gradativa, opções de destinação dos resíduos orgânicos.

Não podemos deixar de citar que países com um sistema de coleta de resíduo orgânico eficiente, contam com a cobrança de tarifas de coleta de lixo, recompensando quem separa os materiais da maneira adequada e gerando recursos para investir na infraestrutura de tratamento e desses resíduos.

No Brasil, a cobrança de tarifas para a coleta do lixo, nos moldes das contas de água e luz, em que pagamos pelo quanto usamos ainda é um tema muito impopular e pouco discutido na gestão pública. A sustentabilidade econômica é fundamental na alteração do modelo de coleta que deixa de enterrar o resíduo orgânico e passa a enxergá-lo como um produto, que após ser processado e transformado pode ser uma nova fonte de receitas para as cidades, e ajudar a viabilizar os custos de construção das novas instalações.

Por fim, trabalhar a reciclagem de orgânicos além da importância ambiental e econômica, tem grande importância social, visto que a mudança de cultura impacta nas pessoas que passam a conhecer melhor o resíduo que produzem, estimulando práticas de compra sustentável, redução de desperdício e impactando também na reciclagem de secos (papel, plástico, vidro e metal). Também melhoram condições sanitárias, especialmente em regiões de vulnerabilidade, reduzindo a proliferação de doenças, ratos e baratas. A distribuição gratuita do composto a pequenos agricultores estimula a produção local de alimentos, reduz a necessidade de adubos sintéticos, melhora a qualidade do solo e agrega renda a estas famílias.

Mudanças são importantes e demonstram que a sociedade civil e o poder público estão atentos a este tema, que cria novos empregos, preserva o meio ambiente e melhora a qualidade de vida das pessoas. Mas apenas leis e boa vontade não bastam. Para preparar as cidades para o futuro, devemos alinhar o engajamento e a educação da população a um modelo ambiental e financeiramente sustentável, que insira os resíduos na chamada “economia circular” afinal, na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma.

Renato Recife

Administrador formado pela EAESP-FGV com MBA em finanças pela Universidade Columbia de Nova York

Rafael Golin Galvão

Engenheiro Agrônomo formado pela Esalq-USP com especialização e mestrado nas áreas de meio ambiente e sustentabilidade

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