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Apostas on-line no Brasil: regulamentação tardia e seus impactos devastadores

Apostas on-line no Brasil: regulamentação tardia e seus impactos devastadores - Imagem: Reprodução/Freepik
Apostas on-line no Brasil: regulamentação tardia e seus impactos devastadores - Imagem: Reprodução/Freepik
Agenor Duque

por Agenor Duque

Publicado em 04/09/2024, às 09h51


A demora na regulamentação do setor de apostas online no Brasil permitiu o crescimento desordenado dessas atividades, resultando em consequências econômicas e sociais que estão começando a impactar significativamente a população. O governo brasileiro, após anos de discussões, finalmente deu mais um passo no processo de regulamentação das casas de apostas online. Com mais de 100 pedidos de autorização de funcionamento de empresas de jogos e apostas virtuais sendo recebidos, as iniciativas que não forem regularizadas serão consideradas ilegais e sujeitas a sanções.

Entretanto, para muitos, esse avanço chega tarde demais. O setor já se expandiu sem controle, atingindo profundamente a economia do país e, mais alarmante, a economia doméstica de inúmeras famílias brasileiras. As apostas online, que se proliferaram a partir da lei aprovada em 2018 durante o governo de Michel Temer, têm se tornado uma nova fonte de preocupação. Estima-se que o país já enfrente uma espécie de "epidemia" de apostas e jogos online, com dados assustadores que evidenciam os efeitos devastadores sobre a saúde financeira e mental da população.

Segundo uma pesquisa realizada pelo banco Itaú, brasileiros perderam cerca de R$ 24 bilhões em jogos e apostas online em um único ano. Essa cifra alarmante é acompanhada por relatos crescentes de endividamento, crises familiares e até casos de suicídio relacionados ao vício em apostas. A mudança de hábitos de consumo é evidente, e muitos brasileiros, principalmente das classes D e E, estão destinando grandes parcelas de sua renda ao jogo, comprometendo itens essenciais como alimentação e moradia.

Para Ione Amorim, consultora do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), a demora na regulamentação foi crucial para a consolidação dessa crise. O ambiente desregulado permitiu que empresas de apostas online utilizassem grandes somas de dinheiro para patrocinar influenciadores digitais e atletas, criando uma narrativa poderosa de que é possível enriquecer rapidamente com as apostas. Isso, somado à publicidade massiva e desregulada, levou milhares de brasileiros a aderirem ao jogo, muitas vezes sem estar cientes dos riscos.

O impacto desse fenômeno não se limita ao ambiente virtual ou às carteiras das famílias. Ele afeta diretamente o sistema bancário, o setor de entretenimento e a saúde pública. Em São Paulo, o Hospital das Clínicas já enfrenta dificuldades em atender a demanda de pessoas com problemas relacionados ao vício em apostas, revelando a magnitude da crise de saúde pública em curso. O diretor de Política Monetária do Banco Central, Gabriel Galípolo, também alertou para o fato de que, embora a renda da população tenha aumentado, o consumo das famílias não cresceu na mesma proporção. Um dos principais motivos é o desvio de parte dessa renda para o ambiente das apostas online.

As consequências vão além do impacto financeiro direto. Amorim destaca que há um comprometimento na qualidade de vida das famílias, que deixam de gastar com lazer, bens de consumo e até mesmo alimentos para investir nas apostas. Esse comportamento altera profundamente a dinâmica familiar e social, gerando um ciclo de endividamento e adoecimento mental. O consumo exacerbado de jogos online também cria um ambiente propício para a agiotagem e outros esquemas fraudulentos, que se aproveitam da vulnerabilidade financeira dos apostadores.

O relatório da consultoria Strategy& reforça essa realidade, ao apontar que 76% das despesas das classes D e E destinadas a "lazer e cultura" estão sendo consumidas pelas apostas online. Este dado é um indicativo claro de que a diversão e o entretenimento saudável estão sendo substituídos pela busca ilusória de ganhos rápidos, promovida pelas casas de apostas. Além disso, os dados mostram que apenas 36% dos ganhos obtidos em apostas são destinados a outros gastos, enquanto o restante é reinvestido no próprio jogo, alimentando ainda mais o ciclo de dependência.

Frente a esse cenário, especialistas defendem a necessidade urgente de medidas mais eficazes na regulamentação desse setor. Amorim sugere que a regulamentação precisa ir além da mera legalização e controle das empresas. Deve-se investir em programas de educação financeira, que conscientizem a população sobre os perigos do vício em apostas e as armadilhas desse ambiente. Além disso, há uma pressão crescente para que as empresas de apostas assumam uma responsabilidade maior pelos danos causados, investindo em campanhas de conscientização e no apoio a programas de tratamento para os viciados em jogo.

A falta de transparência das plataformas de apostas é outro ponto que precisa ser abordado com seriedade. Muitas empresas impõem regras rígidas que dificultam o saque de valores ganhos, obrigando os apostadores a continuarem jogando até atingirem certos patamares de acúmulo. Esse tipo de prática, comum em plataformas sem sede no Brasil, perpetua o vício e dificulta ainda mais o controle financeiro dos apostadores.

A regulamentação das apostas online no Brasil chega, portanto, em um momento crítico. Embora represente um avanço, ela precisa ser acompanhada de políticas públicas robustas e ações concretas que protejam os cidadãos dos perigos de um setor que, se não for adequadamente regulado, pode causar danos irreparáveis à economia e sociedade brasileiras.

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