COLUNA

Harris: uma candidata sem escrutínio

Joe Biden e Kamala Harris - Imagem: Reprodução | X (Twitter) - @funder

Marcus Vinícius De Freitas Publicado em 24/07/2024, às 06h00

A renúncia de Joe Biden à candidatura à presidência norte-americana já era esperada há muito tempo. Nesta coluna, foi afirmado que Biden seria presidente de um só mandato, em razão da idade avançada quando foi eleito e pelos problemas de senilidade que já apresentava há muito tempo. No entanto, por motivos óbvios, Biden não poderia jamais afirmar que não seria candidato à reeleição. Afinal, se assim declarasse, seria considerado um pato manco, um presidente inefetivo porque, afinal, todos estariam, desde o início, já contando com sua partida. Talvez nem cafezinho ou chá quente ele conseguisse tomar na Casa Branca.

A imprensa protegeu a imagem de um presidente com a saúde em clara deterioração. As entrevistas, na maior parte gravadas, tentavam esconder a deterioração da saúde física e mental de Biden. Algumas quedas e pronunciamentos sem sentido eram impossíveis de esconder, mas sempre eram justificadas por motivos exteriores, como viagens ao exterior, cansaço, COVID, dentre outras desculpas. Também era difícil aos Estados Unidos - o país que ainda é o mais importante do sistema internacional - ter na presidência um pato manco enfermo. Para um país que pretende ser um alfa nas relações internacionais, era difícil manter um líder incapacitado. O establishment democrata conseguiu conduzir a situação com muita destreza. A cobertura midiática de Biden também sempre lhe foi muito favorável.

Mas era fato de que Biden, como candidato a um segundo mandato, seria impossível de prosperar. A candidatura foi mantida, no entanto, e ele foi confirmado pelo partido como o candidato democrata à Casa Branca. Houve pouquíssima disputa, afinal poucos se arriscam a disputar com alguém que ocupa o cargo mais alto da nação. E, assim, a história de manteve, até o fatídico primeiro debate em que ficou claro que, diante dos olhos do mundo, Biden se apresentava como já estava há tempos: um senhor fragilizado, com sérias dificuldades. Expôs-se Biden naquele momento a uma humilhação irreversível, que permanecerá para sempre na história.  A artilharia trumpista não precisou fazer nada: somente mostrar as cenas do debate repetidas vezes. Nem a tentativa de assassinato de Donald Trump, na Pensilvânia, conseguiria ser tão efetiva quanto à imagem de um presidente debilitado física e intelectualmente.

Não havia mais como esconder a situação. A pressão financeira aumentou, os recursos foram represados, a mídia, tão fiel anteriormente, revelou-se insatisfeita com a situação, e Hollywood reconheceu que não dava mais para enganar a população. A COVID reapareceu na vida de Biden como uma tábua de salvação. Desta vez, com a questão da saúde novamente presente, ele anunciou aquilo que todos já sabiam: Biden seria o presidente de um só mandato. E, imediatamente, apoiou sua Vice-presidente, Kamala Harris, para assumir a candidatura.

Pelo fato de não ter sido escrutinada da forma como um candidato democrata deve passar antes de ser confirmado na posição, o gosto amargo da falta de democracia na seleção partidária diz muito sobre a forma como os Democratas encaram a manutenção do poder. Toda a discussão que deveria ocorrer durante o período das prévias não ocorreram porque Biden era o candidato natural do Partido. Se ele tivesse anunciado que não concorreria à eleição e Harris houvesse afirmado que seria a candidata, talvez ela não tivesse sobrevivido ao escrutínio das primárias partidárias.

Não é a primeira vez que a liderança do Partido Democrata se comporta de forma não democrática. No processo de seleção de Hillary Clinton como candidata, a liderança partidária pesou a mão para impedir que concorrentes retirassem de Clinton a coroação do Partido.

Kamala Harris tem muito pouco a apresentar ao eleitorado ou a oferecer globalmente. Sua atuação na Vice-presidência ficou muito a desejar. Em razão deste processo de coroação ilegítima, Harris não está bem colocada para manter o partido unido. Além disso, ela se encaixa muito mais na extremidade do partido que no centro. A política de identidade é parte do seu DNA político. Harris também descobrirá que, à semelhança de Barack Obama, por ser filha de pai jamaicano e mãe indiana, não será considerada negra o suficiente para assumir o manto afro-americano. Obama, o guru da Velha Guarda do Partido Democrata certamente emprestará o apoio à candidata. Harris, talvez, consiga – é verdade – trazer ao Partido Democrata algum entusiasmo da juventude, que se revoltou diante do posicionamento de Biden no apoio a Netanyahu e à ação desastrosa de Israel em Gaza.

O Partido Democrata se transformou num cemitério de novos talentos. O progressismo acabou com o partido e com a sua base. As lideranças tentaram assumir discursos progressistas que, de fato, somente pioraram as condições de vida dos cidadãos. O Partido Democrata representa a todos e a ninguém ao mesmo tempo. O sucesso de um cidadão branco se tornou quase um anátema nas filas progressistas do Partido Democrata.

O atentado a Trump não alterou profundamente o cenário eleitoral. Trump já e conhecido e sua base está consolidada. No entanto, Donald Trump assegurou um Partido Republicano muito mais unido na sua eleição, adquiriu a percepção de invencibilidade no atentado, e, certamente, conseguirá questionar Harris de uma forma que ela não foi até hoje. Para sorte dela, Biden estabeleceu que somente haveria dois debates, restando-lhe somente um enfrentamento com Trump. Pela favorabilidade do politicamente correto e a lua de mel com a imprensa, Harris, provavelmente, será considerada a vencedora naquele debate. Se não prevalecer, sua situação também será difícil. No entanto, será nas urnas que se verá a realidade dos fatos.

O fato é que os Democratas protegeram e disponibilizaram a candidatura de alguém sem condições de assumir a presidência. O futuro não parece ser auspicioso para os Estados Unidos.

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