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Única a não vender casa em famosa escadaria de Pinheiros, arquiteta resiste no bairro líder em demolições em SP

Nos últimos meses, a janela do escritório da arquiteta Anne Marie Sumner, de 66 anos, ganhou uma nova vista. O que antes eram as casas de seus vizinhos hoje é

Única a não vender casa em famosa escadaria de Pinheiros, arquiteta resiste no bairro líder em demolições em SP
Única a não vender casa em famosa escadaria de Pinheiros, arquiteta resiste no bairro líder em demolições em SP

Redação Publicado em 12/04/2022, às 00h00 - Atualizado às 08h24


Nos últimos meses, a janela do escritório da arquiteta Anne Marie Sumner, de 66 anos, ganhou uma nova vista. O que antes eram as casas de seus vizinhos hoje é um cenário de paredes demolidas, vigas de metal empilhadas e azulejos do que um dia foi um banheiro. A mesma janela agora vive fechada, para tentar minimizar o pó da demolição que insiste em invadir a casa.

O escritório de Anne é a última construção de pé em um trecho da rua Alves Guimarães, em Pinheiros, bairro que se tornou líder em demolições na cidade. O antigo conjunto de sobrados formava a moldura para uma escadaria, que passou a ser conhecida como “Escadaria das Bailarinas” depois que foi colorida pelo grafiteiro Eduardo Kobra em 2018, com desenhos inspirados nas bailarinas do Ballet Paraisópolis. Desde então, os degraus e as casas do início do século XX viraram cenário de selfies e entraram no roteiro de arte de rua de Pinheiros.

As casas foram compradas e demolidas por uma construtora que pretende erguer um prédio no local. O sobrado azul de Anne agora é vizinho de tapumes. Embora venha há anos recebendo propostas de compra do imóvel, Anne não quis nem mesmo ouvir os valores ofertados pelas construtoras. “Tem tudo aqui, vou pôr onde? Ir para outro lugar para quê? Não tenho nenhum interesse em vender”.

Desde 2014, quando o novo Plano Diretor Estratégico da cidade buscou adensar as regiões próximas a eixos de transporte público, Pinheiros se tornou o bairro líder em demolições na capital paulista. (leia mais abaixo).

A arquiteta comprou o imóvel há 20 anos para transformá-lo em seu escritório, depois de ter visto a escadaria. “Ela era muito bonita, caiada de branco [pintada com cal], uma escada urbana como as que existem em Salvador, em Lisboa”.

Anne Marie — Foto: Marcelo Brandt/ g1

Anne Marie — Foto: Marcelo Brandt/ g1

Antes e depois do casario da escadaria da Rua Alves Guimarães, em Pinheiros — Foto: Marcelo Brandt/g1

Após a derrubada das casas da escadaria, além da inconveniência de estar cercada por um canteiro de obras, Anne explica que o sobrado passou a estar mais exposto às intempéries do tempo. Antes, as casas eram geminadas, ou seja, eram escoradas umas nas outras, compartilhando estruturas. Com a demolição dos imóveis vizinhos, a casa de Anne Marie passou a sofrer com vento e tempestades.

Por isso, Anne planeja impermeabilizar todo o entorno do imóvel para evitar infiltrações durante os próximos anos em que pretende trabalhar no imóvel. “Bom… o arquiteto morre trabalhando”, completa Anne Marie.

O sobrado azul da arquiteta Anne Marie é o único que permanece de pé no antigo conjunto de casas da escadaria da Alves Guimarães, em Pinheiros — Foto: Marcelo Brandt/g1

O sobrado azul da arquiteta Anne Marie é o único que permanece de pé no antigo conjunto de casas da escadaria da Alves Guimarães, em Pinheiros — Foto: Marcelo Brandt/g1

Ela acredita que o processo de transformação do entorno da escadaria poderia ter sido diferente, ao menos com a preservação das fachadas das casas, ainda que elas deixassem de ser residenciais. “O que eu acho que se perde é a configuração urbana, ou seja, alguns momentos que a cidade viveu, que é a memória”.

Já sobre o momento vivido pelo bairro, ela encara como uma transformação prevista na cidade. “É inexorável. A cidade é a cidade. São Paulo tem 1.500 quilômetros quadrados, é uma escala gigantesca a cidade. Então é lógico que a cidade, entre rios, se verticaliza até para poder aproximar a sua própria população”, disse Anne.

Moradores que venderam suas casas e já deixaram o local contaram que a construtora Munir Abbud, que comprou os imóveis, chegou a dizer durante o processo de negociação que manteria as fachadas, o que não aconteceu.

Procurada, a construtora não comentou sobre a proposta de manutenção das fachadas antigas. A empresa diz apenas que está em fase de início do projeto do novo prédio, e que ainda não há informações de como será o novo empreendimento.

“Me sinto a Sônia Braga”

A designer gráfica Claudia Lammoglia, de 50 anos, em frente a sua casa em Pinheiros, bairro onde a família está há três gerações. — Foto: Marcelo Brandt/g1

A designer gráfica Claudia Lammoglia, de 50 anos, em frente a sua casa em Pinheiros, bairro onde a família está há três gerações. — Foto: Marcelo Brandt/g1

Vizinha de fundo de Anne Marie, a designer gráfica Claudia Lammoglia, de 50 anos, também foi procurada pela construtora Munir Abbud. Sua casa tem entrada pela Cardeal Arcoverde, mas faz parte do terreno cobiçado pela empresa.

Os pais da designer compraram a casa quando ela nasceu. Claudia conta que cresceu brincando com os dois irmãos na escadaria e na rua Cardeal Arcoverde. Hoje, o interior do imóvel é repleto de referências ao bairro, com móveis da Teodoro Sampaio e itens de decoração da Praça Benedito Calixto. “Tudo tem um significado”.

A família da designer está em Pinheiros há pelo menos três gerações. O avô de Cláudia tinha uma mercearia na Teodoro Sampaio, e morava em um grande casarão na Artur de Azevedo, com 11 irmãos. No começo da década de 90, o imóvel foi demolido para dar lugar a três prédios.

Foto na parede da sala da designer mostra avô em mercearia na Rua Teodoro Sampaio na década de 30 — Foto: Arquivo pessoal

Foto na parede da sala da designer mostra avô em mercearia na Rua Teodoro Sampaio na década de 30 — Foto: Arquivo pessoal

“É tão difícil, a sua história, a história da sua família, dos seus amigos, não estou falando só de mim, estou falando dos meus vizinhos, tudo está virando pó”, disse Claudia.

Por ter tentado resistir ao avanço imobiliário no bairro, Cláudia se compara com a personagem Clara, do filme Aquarius. “Eu me sinto a Sônia Braga”, disse a designer. No filme, a atriz interpreta a última moradora de um prédio de 1940 localizado em uma área de classe alta em Recife. A personagem da ficção se nega a sair, apesar de uma construtora ter comprado todos os apartamentos, exceto o seu.

No começo das investidas da construtora, a designer disse que não iria vender o imóvel. No entanto, após começarem as demolições dos vizinhos, o cenário mudou. “Está uma insalubridade viver aqui”. Ela disse que o local passou a acumular sujeira, atrair insetos, e que começaram a acontecer invasões ao terreno para o furto de materiais de construção.

“Então, não há resistência. Não estou com muita saída. Acho que eu fui vencida pela questão física, porque pela questão emocional eu estou muito triste. Fisicamente não dá mais. Psicologicamente estou estarrecida, acabou.”

O pai da designer gráfica com familiares na escadaria da Alves Guimarães. Imóvel é da família há 50 anos. — Foto: Arquivo pessoal

O pai da designer gráfica com familiares na escadaria da Alves Guimarães. Imóvel é da família há 50 anos. — Foto: Arquivo pessoal

Bairro líder em demolições

Em oito anos, de 2014 a 2021, a Prefeitura de São Paulo concedeu 1.083 alvarás de demolição em Pinheiros. Em segundo lugar está a Vila Mariana, na Zona Sul, com 1.065. E, em último, duas subprefeituras dos extremos da capital: Cidade Tiradentes, na Zona Leste, e Parelheiros, na zona Sul, ambas com apenas um alvará concedido neste período.

Os moradores do entorno da escadaria da Alves Guimarães contaram que as investidas das construtoras se intensificaram ainda mais durante a pandemia. E, em um momento em que muitas famílias estavam com dificuldades econômicas, os sobrados começaram a ser vendidos.

A percepção dos moradores se reflete nas estatísticas da Prefeitura. Desde 2014, o ano de chegada da Covid-19 teve o maior número de alvarás de demolição concedidos no bairro: 382. No ano anterior, tinham sido 70.

Vista do escritório da arquiteta Anne Marie após as demolições das casas vizinhas na escadaria da Rua Alves Guimarães, em Pinheiros — Foto: Marcelo Brandt/g1

Vista do escritório da arquiteta Anne Marie após as demolições das casas vizinhas na escadaria da Rua Alves Guimarães, em Pinheiros — Foto: Marcelo Brandt/g1

Em 2014, o novo Plano Diretor de São Paulo definiu como e para onde a cidade deveria crescer até 2030. O documento foi resultado de mais de 100 audiências públicas, além de debates e consultas entre vários setores da sociedade.

Na época, se definiu como uma das diretrizes do plano o adensamento dos eixos de transporte público. Ou seja, o objetivo era aumentar a população que mora perto de linhas de trem, metrô e corredores de ônibus, para aproximar a moradia dos empregos e diminuir os deslocamentos urbanos.

Segundo o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, relator do Plano Diretor, o conceito de uma cidade mais compacta e menos dispersa busca usufruir de uma infraestrutura já oferecida e barrar a expansão horizontal da cidade, para preservar as áreas verdes que ainda existem nas bordas.

“Quanto mais se avança o processo de urbanização horizontal, mais se comprometem os mananciais, principalmente no sul do município, e no norte, na Serra da Cantareira”, explicou Nabil.

Além disso, quanto mais a população precisa se deslocar para chegar ao emprego ou estudo, mais gases de efeito estufa são emitidos com os deslocamentos.

“Manter uma subocupação de uma área que tem um potencial urbano muito grande, com transporte coletivo, infraestrutura e emprego perto, é uma forma de não fazer valer a função social da cidade”, afirma o urbanista.

Para tentar obter o adensamento populacional dos eixos de transporte – e não apenas o adensamento construtivo – o Plano Diretor definiu alguns dispositivos, como a redução de vagas de garagem por apartamento e uma metragem média das unidades de 80 metros quadrados.

Dois anos após o novo Plano, foi aprovada a Lei de Zoneamento, uma lei complementar a ele. Enquanto o Plano Diretor define diretrizes para o crescimento da cidade, o Zoneamento (Lei de Uso e Ocupação do Solo) estabelece regras do que pode ser feito em cada local da cidade. Por exemplo, é ele que estabelece se determinada região será considerada de Preservação Ambiental ou Cultural, ou se deve ser exclusivamente residencial ou de uso misto.

“Em 2016, na Lei de Uso e Ocupação do Solo, houve uma certa concessão para o mercado imobiliário”, contou Nabil. Na época, foi aprovado o aumento de vagas de garagem e também de tamanho dos apartamentos. “Muito do que está sendo inaugurado hoje está baseado nessa legislação”, afirmou o urbanista.

Para Nabil, as leis complementares ao plano não acompanharam as diretrizes dele, e devem ser revistas. “O adensamento populacional é necessário para garantir uma cidade mais compacta, mas você tem que limitar. Adensar no eixo [de transporte] não significa verticalizar em todos os lugares, de qualquer maneira”, disse Nabil.

Ele destaca ainda outro instrumento do plano que não foi viabilizado pela Lei de Zoneamento. O plano prevê que áreas com interesses urbanos específicos (patrimonial ou cultural) devem ser identificadas e excluídas do eixo de transporte, para serem preservadas. Isso também se aplica a regiões que estão em miolos de bairros, onde se podem construir prédios de até oito andares.

“Existem determinadas áreas da cidade que precisam ficar como elas estavam, são ícones importantes, por exemplo, essa escadaria é uma delas”, disse o urbanista.

Ainda que distorções possam ter ocorrido em algumas regiões, estudos mostram que a diretriz de adensamento populacional nos eixos de transporte está sendo cumprida, segundo o urbanista.

Ele cita ainda o exemplo de alguns lugares que teriam infraestrutura para ser mais adensados, como o Jardim Europa, mas que, por regras da Lei de Zoneamento, não podem ser alterados. “A baixa densidade dos Jardins, toda exclusivamente residencial, é um escândalo. É uma área super bem localizada, perto de emprego, perto de transporte coletivo, bem arborizada, bem urbanizada, e que tem uma densidade baixíssima”.

Para o arquiteto e urbanista Lucas Chiconi, o fato de Pinheiros estar próximos a esses “bairros jardins”, como Jardim América, Jardim Europa e Alto de Pinheiros, o torna um chamariz maior ainda para o mercado imobiliário. “Enquanto todos esses bairros estão intactos, o resto da cidade vem abaixo”, disse Chiconi.

No caso específico de Pinheiros, a arquiteta, urbanista e coordenadora do Instituto Pólis, Margareth Martiko Uemura, destaca também que a demolição de quadras inteiras para a substituição por grandes torres residenciais acaba expulsando os pequenos comércios. Com isso, se diminui o uso misto (comercial e residencial) e os pequenos deslocamentos, um dos objetivos do plano.

“Isso está causando uma substituição de população que também não é desejada. A ideia é que a população que usa esse bairro permaneça, e que os usos existentes hoje também permaneçam”, disse a arquiteta.

Pedido de tombamento da escadaria

Com a ideia de preservar o patrimônio histórico e cultural da escadaria, a Associação Escada Viva, formada por moradores da Rua Alves Guimarães, entrou com um pedido de tombamento no Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).

O grupo pede que a escadaria da Rua Alves Guimarães, um espaço público, seja reconhecida como bem de interesse histórico e cultural. “Cuja preservação será essencial para salvaguardar a identidade do bairro de Pinheiros”, diz o documento enviado ao órgão de preservação do patrimônio.

Vista da escadaria da Rua Alves Guimarães em 2014, quando ainda era pintada de branco  — Foto: Paula Paiva Paulo/g1

Vista da escadaria da Rua Alves Guimarães em 2014, quando ainda era pintada de branco — Foto: Paula Paiva Paulo/g1

O estudo feito por arquitetos ligados à associação mostra que as casas foram construídas antes mesmo da escadaria, feita para atender a um grande desnível entre as ruas Cardeal Arcoverde e Teodoro Sampaio. A diferença no relevo é causada por características naturais, já que a Cardeal Arcoverde está em um vale, e também porque a Teodoro Sampaio foi aterrada para receber uma linha de bonde, implantada em 1909.

“É nítido o fato de que ela [a escadaria] faz parte do processo de urbanização do bairro, sendo uma importante memória tanto do relevo natural do terreno da região quanto da implantação do sistema de bondes elétricos nesse trecho da cidade”, diz o pedido enviado ao Conpresp.

A associação pede ainda que as casas remanescentes sejam preservadas, para proteger a memória de que a escadaria foi um espaço de uso residencial, e recomenda que o novo empreendimento preveja acessos pela escadaria, para manter o uso dos patamares que davam acesso às antigas casas.

O Conpresp informou que o estudo da associação está em análise, e que o assunto irá para votação no órgão para decidir se será aberto o processo de tombamento.

Integrantes da Associação Escada Viva, que busca o tombamento da escadaria da Rua Alves Guimarães junto ao Conpresp — Foto: Arquivo pessoal

Integrantes da Associação Escada Viva, que busca o tombamento da escadaria da Rua Alves Guimarães junto ao Conpresp — Foto: Arquivo pessoal

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G1

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