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Sorocaba foi a primeira cidade da América Latina a erradicar febre amarela após surto que matou mais de 700 pessoas

Nos idos de 1897, as ruas de Sorocaba (SP) eram ocupadas por pedestres e mulas que faziam parte da feira de muares, atraindo pessoas de todo o Brasil e

Sorocaba foi a primeira cidade da América Latina a erradicar febre amarela após surto que matou mais de 700 pessoas
Sorocaba foi a primeira cidade da América Latina a erradicar febre amarela após surto que matou mais de 700 pessoas

Redação Publicado em 15/08/2018, às 00h00 - Atualizado às 10h43


Cidade passou por dois surtos da doença, o último e mais grave em 1900. Naquela época, acreditava-se que a doença era transmitida pelo ar e pela água.

Nos idos de 1897, as ruas de Sorocaba (SP) eram ocupadas por pedestres e mulas que faziam parte da feira de muares, atraindo pessoas de todo o Brasil e movimentando a economia da região. Mas toda essa efervescência econômica e social começou a dividir espaço com uma carroça conduzida pelo monsenhor João Soares do Amaral.

Acompanhado de funcionários da prefeitura, o sacerdote católico passava todo fim de tarde recolhendo corpos das vítimas da febre amarela. O som de um sino fúnebre anunciava a sua chegada.

A cena pôde ser vista com frequência por moradores entre os anos de 1897 e 1900, quando Sorocaba foi assolada por dois surtos urbanos da doença, que assustaram a população e prejudicaram seu desenvolvimento.

Foi necessária a ajuda de voluntários e sanitaristas de todo o Brasil para descobrir como a febre amarela era transmitida. Com a força-tarefa, Sorocaba tornou-se o primeiro município da América Latina a erradicar o vírus em 1900, como contou ao G1 o historiador José Rubens Incao. A vacina contra o vírus surgiu apenas em 1913, conforme dados da Fundação Oswaldo Cruz.

Extermínio

Em 1897, ano em que foi registrada a primeira vítima fatal pela doença no município, a população da cidade era estimada em 17 mil pessoas. Foram registradas 42 mortes e não há informações do total de infectadas. O sacerdote e historiador Luiz Castanho de Almeida reuniu informações sobre as epidemias em um dos livros sobre a história de Sorocaba.

O segundo e pior surto de febre amarela urbana em Sorocaba começou próximo ao Natal de 1899 e estendeu-se até, aproximadamente, junho de 1900. Em cinco meses, quase 5% da população foi exterminada pela doença, totalizando 743 mortes e 2.322 infectados.

Jornal 'O 15 de Novembro' publicou o primeiro caso de febre amarela em Sorocaba  (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

Jornal ‘O 15 de Novembro’ publicou o primeiro caso de febre amarela em Sorocaba (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

De acordo com o historiador José Rubens Incao, responsável pela Biblioteca Municipal Infantil, a cidade tinha cerca de 15 mil habitantes neste período.

Para se ter ideia da quantidade de doentes em 1900, seria como se na população atual de Sorocaba, estimada em 659.871 moradores, quase 100 mil fossem infectados.

Comerciante alemão foi a primeira vítima da doença (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

Comerciante alemão foi a primeira vítima da doença (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

O jornal “O 15 de Novembro” publicou na edição do dia 29 de dezembro de 1899 o primeiro caso de febre amarela, que marcou o início do segundo surto. (Veja acima)

A vítima, um comerciante alemão chamado Ludowig Malüche, era dona de uma padaria e morava na Rua das Flores, atual Rua Álvaro Soares. Assim como o comerciante, a maioria dos mortos era imigrante da Europa.

Durante o surto, acreditava-se que o vírus era transmitido pelo ar e pela água. Somente depois foi descoberto que o vetor era o mosquito Aedes aegypti. Incao destaca que, na época, não havia serviço público como limpeza, coleta de lixo e água encanada, o que pode ter contribuído para a proliferação do mosquito.

O primeiro surto de febre amarela urbana espantou os moradores. Alguns mudaram-se para Itapetininga e Tietê.

“A febre foi avassaladora. As feiras de muares acabaram por conta da epidemia e foram transferidas pra Itapetininga, o que contribuiu para uma queda economia da cidade”, afirma Incao.

Diferentemente dos casos registrados na região de Sorocaba desde o início do ano, em que macacos bugios morreram por febre amarela, no início do séxulo XIX não foram registrados animais infectados.

Tratamento

Emilio Ribas, um sanitarista de Pindamonhangaba (SP) e que anos depois fundaria o Instituto Butantã, em São Paulo, viajou para Sorocaba em 1897. O especialista montou uma equipe para o extermínio do mosquito Aedes Aegypti.

“Todo mundo cobrava do governo o projeto de saneamento e serviços básicos. Mas quando Emilio Ribas chegou, disse que a causa da proliferação da febre era um mosquito”, conta o historiador.

Depois, Emilio Ribas e sua equipe foram a Ribeirão Preto para cuidar do surto de febre amarela. “O que ele fez por Sorocaba foi um embrião do que seria feito em todas as outras cidades do Brasil, inclusive no Rio de Janeiro (RJ)”, diz Incao.

Centro interditado

De acordo com José Rubens Incao, o Centro de Sorocaba foi totalmente isolado para o tratamento dos doentes. Comerciantes fecharam seus negócios e até a Câmara Municipal foi transferida para a Fazenda Ipanema, hoje em Iperó (SP).

Diversos prédios públicos e até igrejas se transformaram em hospitais e centros de acolhimento. (Veja abaixo)

Força-tarefa foi montada para o tratamento de doentes em Sorocaba  (Foto: Clayton Esteves/TV TEM)

Força-tarefa foi montada para o tratamento de doentes em Sorocaba (Foto: Clayton Esteves/TV TEM)

Força-tarefa

Nomes como os médicos Álvaro Soares e Artur Fajardo, o sanitarista Paula Souza, Monsenhor João Soares e Dom Antônio Alvarenga participaram do combate à doença na virada do século XX na Manchester Paulista.

Além dos esforços dos médicos e religiosos, a cidade abrigou uma rede de apoio às vítimas e famílias que tiveram membros mortos. O industrial Manoel José da Fonseca e o comerciante João Tavares, por exemplo, se uniram para arrecadar alimentos, cobertores e remédios. Outros moradores como o comerciante Hércules Tavares e o professor Arthur Gomes também ajudaram a população.

Busto de Monsenhor João Soares (à esq.) rara foto de Álvaro Soares (à dir.)  (Foto: Matheus Fazolin/G1 & Biblioteca Municipal Infantil/Divulgação)

Busto de Monsenhor João Soares (à esq.) rara foto de Álvaro Soares (à dir.) (Foto: Matheus Fazolin/G1 & Biblioteca Municipal Infantil/Divulgação)

Após cuidar de tantas vítimas da doença e dedicar-se pela cura das pessoas que sofriam de febre amarela, Monsenhor João Soares do Amaral foi surpreendido pelo mesmo mal. No dia 16 de maio de 1900, o jornal “O 15 de Novembro” anunciava sua morte.

Morte de Monsenhor João Soares foi destaque em jornal da época (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

Morte de Monsenhor João Soares foi destaque em jornal da época (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

Saneamento foi tratado durante os surtos de febre amarela (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

Saneamento foi tratado durante os surtos de febre amarela (Foto: Acervo/Gabinete de Leitura Sorocabano)

Teatro como forma de conscientização

Na época dos surtos, a forma que moradores encontraram de divulgar o problema foi por meio de peças de teatros. Sempre que passava por uma cidade, o nome da peça ganhava um complemento, como “A Febre Amarela em Sorocaba”.

Já em 2007, os atores Rodrigo Cintra e Márcio Pérsico criaram uma trilogia que contou a história de Sorocaba. “Queríamos levar o público aos locais onde aconteceram os fatos. Por isso, a peça começava embaixo do viaduto da Avenida Afonso Vergueiro [Ferroviários] e ia para outros pontos da cidade, como o interior da escola Matheus Maylasky”, conta Rodrigo.

Peça sobre a febre amarela foi realizada em 2002  (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

Peça sobre a febre amarela foi realizada em 2002 (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

Febre amarela silvestre x urbana

Diferentemente dos casos registrados no Brasil em 2017 e 2018, de febre amarela silvestre, os surtos registrados em Sorocaba foram do tipo urbano da doença. O médico infectologista e professor da PUC Sorocaba, Carlos Lazar, explica que, na época, vários cientistas viajaram até a cidade para estudar os casos.

Segundo o especialista, os mosquitos Haemagogus e Sabethes, responsáveis pela transmissão do vírus, têm vida curta. “Até picam outros animais, além dos macacos, mas o vírus tem vida curta. Eles gostam de lugares mais calmos, e o Aedes prefere movimento, gosta de gente.”

De acordo com especialista, mosquito Aedes aegipty prefere áreas com movimento  (Foto: Reuters)

De acordo com especialista, mosquito Aedes aegipty prefere áreas com movimento (Foto: Reuters)

Lazar frisa que o diagnóstico de febre amarela é feito por meio do quadro clínico, reação laboratorial e sorologia.

“Assim como a dengue, a febre amarela tem vários graus. Pode ocorrer de a pessoa ter a doença, não evoluir e ela nem fica sabendo. Apenas 10% dos casos são da forma grave e podem evoluir ao óbito”, diz. As únicas formas de prevenção são a vacina e o uso de repelente, frisa o médico.

Febre amarela no Brasil

O primeiro caso de febre amarela no Brasil foi registrado em 1685, no Pernambuco, onde permaneceu castigando os moradores por 10 anos, segundo o Ministério da Saúde. No mesmo período, cerca de 900 pessoas morreram em Salvador. Diante dos casos, as campanhas de prevenção conseguiram manter a doença controlada por 150 anos.

Entenda como ocorre a infecção e quais são os sintomas da febre amarela (Foto: Alexandre Mauro/Editoria de Arte G1)

Entenda como ocorre a infecção e quais são os sintomas da febre amarela (Foto: Alexandre Mauro/Editoria de Arte G1)

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