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Direitos Humanos

Intolerância religiosa: crimes contra crenças crescem no Brasil e medo toma conta

Os crimes motivados pela orientação religiosa tiveram aumento de 45% em 2022, diz estudo

O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi criado em homenagem a Iyalorixá Mãe Gilda, vítima de crimes por sua fé - Imagem: Freepik
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi criado em homenagem a Iyalorixá Mãe Gilda, vítima de crimes por sua fé - Imagem: Freepik

Mateus Omena Publicado em 20/01/2023, às 10h12


Em 21 de janeiro é comemorado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que marca o compromisso entre os cidadãos com o respeito às diversas crenças que fazem parte da sociedade brasileira. Além da conscientização sobre a importância das pluralidades para o funcionamento da democracia.

A data foi estabelecida em 2007, em homenagem a Iyalorixá Mãe Gilda, sacerdotisa de um terreiro de Candomblé que foi vítima de intolerância religiosa em 2000.

Apesar da ocasião especial, o Brasil vem enfrentando o aumento de casos de crimes motivados pelas crenças.

Por outro lado, as religiões de matriz africana são as que mais sofrem com os crimes de intolerância religiosa. Um levantamento feito pelo Ministério dos Direitos Humanos aponta que apenas em 2022, foram 1.201 ataques em razão da religião, aumento de 45% em relação a dois anos atrás.

De acordo com a pasta, o estado com mais registros é São Paulo, com 111 denúncias, seguido do Rio de Janeiro, com 97, Minas Gerais (51), Bahia (39), Rio Grande do Sul (26), Ceará (11) e Pernambuco (13).

A Secretaria da Justiça de São Paulo também apresentou um ranking, com base em denúncias feitas a partir do segundo semestre de 2021 até 2022. O estudo mostrou que, em um ano, as religiões de matriz africana lideraram os índices de queixas de ameaças e injúrias, com 57 registros no 2º semestre de 2021 e 44 denúncias no 1º semestre de 2022.

Em segundo lugar está o preconceito contra evangélicos, respectivamente 6 registros e 12 denúncias no mesmo período. Em terceiro, aparecem os católicos, com 6 registros e 7 denúncias. 

Diante deste cenário, muitas pessoas sofrem ataques por demonstrar sua fé e seus costumes, além de locais sagrados que são destruídos por criminosos.

Hostilidades desde a infância

Em entrevista ao Diário de S.Paulo, Letícia Sant’Anna Cassiano, estudante de comunicação, de 20 anos, relatou que a umbanda faz parte de sua família há muito tempo, mas tanto ela quanto os parentes já sofreram hostilidades por causa de suas crenças.

A jovem recordou o período em que viveu em Socorro, no interior do estado, marcado pelos preconceitos de alguns moradores contra as religiões de matriz africana. Segundo Letícia, sua crença se deu pelas religiões umbanda (por parte de pai) e católica (pela família da mãe), mas nem sempre houve momentos de harmonia entre as duas partes.

“Durante a crisma, cheguei a ter uma aula inteira sobre como as religiões de matriz africana não eram de Deus. Muitas pessoas da igreja falaram coisas horríveis, sem conhecer o mínimo sobre muitos dos costumes da Umbanda. Cheguei a voltar chorando pra casa porque não podia nem pensar em defender a religião da família ali”.

No entanto, os problemas não cessaram naquele momento, pois desde criança ela teve que enfrentar críticas e constrangimentos na escola e em outros espaços de convivência.

“Na escola nunca escondi minha religião e falava abertamente sobre isso nas aulas. Mas muitas vezes recebi olhares tortos, havia menina fazendo o sinal da cruz e vários julgamentos de pessoas que me diziam, sem mal me conhecer, que eu deveria decidir ‘de que lado’ eu estava. Meus pais também me instruíram a não falar sobre o centro para meus coleguinhas, com medo que eu acabasse sendo excluída pelo preconceito dos pais das outras crianças”.

Letícia também contou que seus pais a instruíam a tomar certos cuidados em locais públicos. “Me lembro de evitar parar na estrada com a roupa branca, e só se trocar na casa dos meus avós antes de uma gira. Ou quando vamos na praia, saudar o mar discretamente, encontrar locais mais escondidos para as oferendas, entre outras precauções”.

No entanto, a jovem e seus parentes enfrentaram um episódio assustador quando foram expostos por uma vizinha.

“Desde que nasci, o terreiro que frequentamos era em Socorro, nos fundos da casa dos meus avós paternos. Até que em 2016, uma vizinha começou a fazer denúncias contra meus avós por motivos diferentes, mas todos relacionados ao terreiro. Ela chegou até a tirar fotos de mim e dos meus primos, escondida nas árvores da chácara dela. A perseguição chegou a um ponto que eles precisaram largar toda a vida que construíram por anos em Socorro, para ir morar com uma de minhas tias em um sobrado em Guarulhos”.

Convivência com o medo

A jornalista Yasmin Corrêa, de 22 anos, também aprendeu desde pequena a lidar com as discriminações por conta de suas relações com a Umbanda.

Batizada em um terreiro em Bragança Paulista, ela afirma que sempre teve orgulho de sua crença, no entanto, durante muito tempo conviveu com o receio de contar às outras pessoas sobre sua vida religiosa, pela possibilidade de ser rejeitada ou agredida.

“Esse bloqueio é motivado pelos casos diários de violência que escutamos, além de terreiros que foram invadidos, saqueados, queimados, assim como outras demonstrações de intolerância”, explicou. “Há muito ódio para uma pessoa chegar ao ponto de cometer atrocidades como essas. Durante muito tempo senti medo de ser julgada, excluída ou tratada de modo diferente por conta da minha religião. Eu sempre tenho esse receio”.

Segundo Yasmin, uma das linhas que costuma seguir na Umbanda é a de Exu, que envolve espíritos que contam com vibrações muito parecidas com a dos humanos e se destaca das outras que fazem parte da crença. No entanto, ela contou que sempre teve dificuldades de explicar aos colegas os detalhes de suas tradições, pois muitos associam a crença à 'práticas demoníacas'.

“Muitas pessoas sem nenhum grau de conhecimento da minha crença chegaram a me falar que nós [umbandistas] adoramos o ‘demônio’. Assim, eu tive que parar e explicar que não era isso. Mas, também já surgiram outras insinuações e acusações de ações muito graves, como por exemplo, que na Umbanda matamos animais como sacrifício e temos práticas violentas”, lamentou.

“A maioria dos comentários sempre vêm carregados de um pouco de julgamento. Por isso, nós temos que combater o preconceito e as conclusões precipitadas explicando detalhadamente como tudo funciona”.

A jornalista recordou também que a mãe sempre recomendava esconder a crença umbandista para evitar retaliações, por esse motivo ela passou muitos anos dizendo aos colegas que era espírita. No entanto, ela afirma que desde que se mudou para São Paulo, se sentiu mais à vontade consigo mesmo e sua fé, tanto que usa diariamente suas guias e terços, além de realizar orações diárias. Sem temer reações negativas das pessoas.

Além das aparências

Letícia Sant’Anna deixa bem claro que nenhum terreiro ou centro de Umbanda tem os mesmos conceitos e práticas, por isso cada um cultua orixás específicos e estabelece suas tradições. No entanto, ela ressalta que um dos maiores ensinamentos da religião é a aproximação com Deus e a positividade para enxergar o mundo.

“A Umbanda, mais do que uma religião, me deu uma filosofia de vida baseada na solidariedade em todos os sentidos, paz e amor ao próximo. Isso moldou minha visão de mundo, dita muitas das minhas ações, da minha abertura para o mundo e suas adversidades e para o meu propósito em vida”.

Diante desses princípios, a jovem e sua família têm recorrido ao diálogo para esclarecer suas práticas religiosas e combater preconceitos. “Lidamos com esse problema pacificamente e, sempre que possível, na base do diálogo para educar e tirar as pessoas da ignorância e tornar o preconceito uma escolha, não uma indução social”.

No mesmo sentido, Yasmin também pontua que os conceitos da Umbanda também preconiza o compartilhamento de ideias e discussão de problemas do cotidiano, especialmente intolerância e racismo.

“A gente também reflete sobre os crimes motvados pela raça, porque grande parte dos nossos conhecidos do centro são negros e esse grupo é o que mais sofre com os ataques, em comparação com os brancos, como eu e meus pais”.

E finaliza: “Por isso que o básico é manter o diálogo e a compreensão. A tolerância religiosa é um dos pilares fundamentais para que a democracia funcione. Desse modo, é necessário respeitar os outros e fugir de preconceitos. Afinal, as pessoas não são totalmente iguais”.

Leis rígidas

O direito de crer ou de não crer é garantido pela Constituição Federal. Quem comete discriminação por motivo religioso, agredindo a liberdade de crença de cada um, pode ser punido com um a três anos de prisão.

Contudo, em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sancionou uma lei que equipara os crimes de injúria racial e racismo, que também aumentou a pena para quem praticar intolerância religiosa.

A pena passa a ser de dois a cinco anos de prisão a quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. E se isso for feito, por exemplo, de modo violento, com agressão física ou impedindo a realização de um culto, a pena se torna ainda maior.

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