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‘Aos 12 anos, barriga crescia e não entendia por quê’: meninas denunciam estupros no Equador

A decisão da Suprema Corte do Equador, de abril deste ano, de permitir a interrupção da gravidez a todas as mulheres vítimas de estupro chamou atenção para o

‘Aos 12 anos, barriga crescia e não entendia por quê’: meninas denunciam estupros no Equador
‘Aos 12 anos, barriga crescia e não entendia por quê’: meninas denunciam estupros no Equador

Redação Publicado em 08/07/2021, às 00h00 - Atualizado às 08h37


A decisão da Suprema Corte do Equador, de abril deste ano, de permitir a interrupção da gravidez a todas as mulheres vítimas de estupro chamou atenção para o sofrimento vivido por meninas e adolescentes que sofrem abusos sexuais, muitas vezes nas mãos de seus próprios familiares.

“Ninguém vê, ninguém ouve e as montanhas nunca falam.” Assim uma dessas vítimas encerra a entrevista, olhando para a cordilheira dos Andes em silêncio.

A conversa havia começado 40 minutos antes, com o acordo sobre qual seria seu nome fictício. “Sarita”, diz ela. Sara ou Sarita? “Sarita”.

Embora o uso do diminutivo seja comum na serra do Equador, parece estranho usá-lo para falar de uma mulher que cria quatro filhos sozinha.

O primeiro foi fruto de um estupro, os dois do meio são filhos de uma relação que terminou recentemente e o último foi dado à luz pela irmã mais nova de Sarita, estuprada pelo mesmo agressor.

É fácil esquecer que ela não tem mais de 25 anos, mas deixou de habitar aquele território infantil a que pertence o diminutivo aos 10 anos de idade, quando o padrasto dela a estuprou pela primeira vez.

“Hoje tenho muito medo do escuro e de ser velha”, diz ela.

A escuridão foi o cenário de toda a violência.

“Quando eles me agarravam e queriam fazer coisas comigo, dizia que não. Inclusive, uma vez corri (fugi) sem saber para onde. Eles me encontraram e foi um pesadelo. Tomei umas boas surras”.

Falha

Em 28 de abril, o Tribunal Constitucional do Equador decidiu descriminalizar o aborto em todos os casos de estupro e não apenas quando as vítimas eram mulheres com deficiência mental, como até então determinava o Código Penal.

A decisão gerou embate entre defensores e críticos da descriminalização ocorrida nos últimos anos em outros países latino-americanos.

Mas também lembrou ao Equador o sofrimento vividos pelas meninas e adolescentes vítimas de violência sexual, especialmente em áreas rurais e marginais, cujos agressores são — em sua maioria — pais, tios, irmãos, avós, padrastos.

Meninas que, segundo a advogada Ana Vera, da Surkuna, uma organização que defende os direitos sexuais e reprodutivos, “têm uma falta de informação tão brutal que não sabem que seu corpo vai mudar, então não se dão conta até que a gravidez esteja muito avançada”, diz ela à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

“Nem sabia que estava grávida. Só sabia que minha barriga estava crescendo e não entendia por quê”, lembra Sarita.

Após o parto, ela deixou a filha debaixo de uma ponte. Mas como ninguém a pegou, ela a levou de volta com ela.

Quatro por dia

A Pesquisa Nacional de Relações Familiares e Violência de Gênero contra a Mulher revelou, em 2019, que 65 em cada 100 mulheres sofreram algum tipo de violência no país.

Delas, 32,7% já foram vítimas de violência sexual, embora Ana Vera considere que existe “uma subnotificação brutal” destas agressões, devido ao estigma da denúncia e à precária resposta do Judiciário.

Quando, como no caso de Sarita, o estuprador é o homem da casa, as vítimas também não denunciam, porque o agressor costuma ser a única fonte de renda do domicílio. Além disso, muitas vezes, seus relatos são postos à prova.

“Minha mãe preferia ficar quieta”, diz Sarita. “Acho que até sentia ciúmes.”

“Quando eu contei a ela (o que estava acontecendo), tive a impressão de que ela estava reclamando de alguma coisa (do agressor), mas inclusive disse que era minha culpa.” Mais tarde, na entrevista, Sarita diz que tem certeza de que sua mãe também foi abusada.

Para ter uma ideia de quantos menores são vítimas de agressão sexual, Ana Acosta, autora do relatório “As meninas invisíveis do Equador”, recomenda consultar o registro de nascimento do Instituto Nacional de Estatística e Censo (INEC).

“Como são registrados os nascimentos de crianças vivas pela idade da mãe, e como qualquer relação sexual de menores de 14 anos é considerada violação do código penal, então não há como errar.

Em 2020, 1.631 meninas entre 10 e 14 anos deram à luz no Equador, quatro por dia. O número não inclui as que não engravidaram, as que abortaram ou as que tiveram complicações obstétricas que as impediram de dar à luz.

O número de 2020 é o mais baixo da última década (10 anos em que nasceram 21.165 filhos dessas meninas), mas também foi o primeiro da pandemia que trancou vítimas e abusadores no mesmo lugar.

Além disso, devido à crise econômica, o governo de Lenín Moreno retirou todos os recursos do plano de prevenção da gravidez de menores.

Os números para 2021 ainda não são conhecidos.

Sarita deu à luz aos 13 anos, foi estuprada pela primeira vez aos 10, mas a antecipação do horror ocorreu aos sete, quando suspeitou que o pai dela estava abusando de uma prima.

“Pensando bem, agora sinto que deveria ter percebido, deveria saber. Mas as crianças esquecem de tudo, quanto mais rápido, melhor”, reconhece.

“Quando aconteceu comigo, sabia o que o outro estava sentindo.”

Isso não foi, no entanto, um motivo para separação dos pais dela, mas para agressões constantes contra sua mãe.

“Lembro-me da minha mãe tremendo de medo quando ele chegava a tarde, porque ela sabia o que ia acontecer: às vezes ele chegava bêbado, fumava e batia nela ali mesmo.”

Quando, depois terminarem o relacionamento e reatarem várias vezes, os pais se separaram para sempre, um filho e uma filha ficaram com ele. Duas filhas — Sarita e sua irmã mais nova — com a mãe, que foi morar com outro homem.

O padrasto estuprou e engravidou as duas filhas.

“Acho que o da minha irmã deve ser muito mais difícil”, reflete Sarita, “porque imagine, você o chama de pai todos os dias e o pai faz isso com você. Não é justo.”

“Acho que esses homens têm problemas mentais, porque estão prejudicando a pessoa para o resto da vida. Acho que também é porque moram nas montanhas.”

Pais

No Equador, o incesto tem sido pouco estudado porque não é classificado como um crime, embora seja considerado um agravante nos delitos contra a integridade sexual e reprodutiva, afirma a psicóloga Fernanda Porras no estudo “Corpos que importam”.

Em relação aos fatores que o normalizaram em determinadas regiões, existe a ideia de que esse é um problema que deve ser enfrentado dentro da família, assim como a dependência econômica e emocional das vítimas e de suas mães em relação ao agressor.

Para Ana Vera, o fato de nem o sistema de saúde, nem o sistema de ensino, nem a Justiça detectarem os abusos de quatro meninas (Sarita, suas duas irmãs e sua prima) mostra a ineficácia do Estado na proteção de menores, principalmente na zona rural.

Com a adoção de convenções e tratados internacionais, o Estado equatoriano começou há 40 anos a tomar medidas para acabar com a violência de todos os tipos contra mulheres, adolescentes e crianças.

Foram criadas delegacias para mulheres e unidades especializadas no Ministério Público.

Em 2007, a erradicação desta violência foi considerada, por decreto executivo, uma política de Estado e, 11 anos depois, foi sancionada uma abrangente lei orgânica.

Apesar disso, em 2016 a Fundação Desafío, uma das organizações que promoveu a ação que culminou na decisão da Suprema Corte, informou que o Equador ocupava o segundo lugar na região (depois da Venezuela) onde a taxa específica de fecundidade adolescente não havia diminuído nos últimos anos.

Na noite de 11 de abril de 2021, quando foi eleito presidente, Guillermo Lasso falou diretamente “às meninas que tiveram filhos e que cuidam dos filhos” e garantiu-lhes que ele e a esposa dele seriam seus pais: “Nós as protegeremos, a gente vai cuidar de vocês”.

Pierina Correa, irmã do ex-presidente Rafael Correa e presidente da Comissão de Proteção Integral a Meninas, Meninos e Adolescentes da Assembleia Nacional, disse na semana passada que a descriminalização do aborto deve ser decidida em consulta popular e participou de um ato contra interrupção da gravidez.

Para Ana Vera, o Equador é um país que idealiza a figura da mãe e, por isso, é difícil optar pelo aborto.

E as que decidem ser mães “encontram muitas dificuldades nas quais o Estado é incapaz de acompanhá-las”, algo a que o relatório da Fundação Desafío também faz referência, mencionando a falta de alternativas para continuar os estudos, oportunidades de trabalho decentes ou apoio para crianças de pais com guarda compartilhada.

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G1

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