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O predomínio brasileiro no continente deixa evidente um desequilíbrio nada saudável

A explosiva e previsível combinação entre a farra das vagas distribuídas e a disparidade financeira nem tardou nem falhou: pela primeira vez os quatro

O predomínio brasileiro no continente deixa evidente um desequilíbrio nada saudável
O predomínio brasileiro no continente deixa evidente um desequilíbrio nada saudável

Redação Publicado em 01/10/2021, às 00h00 - Atualizado às 14h16


Mesmo no período anterior à Sul-Americana, antes de 2002, jamais um país havia conseguido classificar quatro finalistas nos dois torneios continentais.

A explosiva e previsível combinação entre a farra das vagas distribuídas e a disparidade financeira nem tardou nem falhou: pela primeira vez os quatro finalistas das duas competições continentais são provenientes de um mesmo país. Com a vitória por 2 a 0 sobre o Peñarol, na noite de quinta feira, o Athletico-PR vai enfrentar o Red Bull Bragantino na decisão da Sul-Americana. A final da Libertadores, todos já sabíamos, será entre Flamengo e Palmeiras.

É histórico, mas é ainda mais lamentável. Pois sempre teremos algo a lamentar quando uma competição continental se torna um mata-mata doméstico, o que é evidência de um desequilíbrio nada saudável. O número de vagas disponíveis aos brasileiros, que na próxima temporada pode chegar a nove participantes na Libertadores (praticamente metade da tabela do Campeonato Brasileiro) e a disparidade econômica colocam em risco o próprio futuro das competições continentais. Ninguém pode impedir que algum time do Peru ou da Bolívia, sabendo das suas módicas chances de competir no âmbito sul-americano, decida colocar juvenis para as oitavas da Libertadores, privilegiando o campeonato nacional. Não poderíamos sequer julgá-los: o dinheiro nutre os cofres, mas a torcida se alimenta pela esperança de levantar taças. De obter algum protagonismo, que seja.

A primeira vez que a Libertadores foi decidida por dois compatriotas aconteceu em 2005, quarenta e cinco anos após o início da competição, quando o São Paulo enfrentou o Athletico-PR. O evento de patrícios se repetiria no ano seguinte, com os tricolores disputando a decisão contra o Inter. Prova de que os orçamentos são inclementes, apenas nos últimos quatro anos tivemos mais duas finais com equipes do mesmo país: River x Boca (2018) e Palmeiras x Santos (2020). Para a maioria dos torcedores sul-americanos, apartados da festa, faz muito tempo que almejar a felicidade é como entrar em um financiamento de um quarto e sala — vinte anos com juros e sem esperança de título.

(Hoje todos os finalistas são ricos, a confederação sul-americana tem seu próprio canal pago de TV e meus heróis morreram de overdose ou errando uma cabeçada embaixo dos paus. Onde andará o meu Colón, a minha Ponte Preta, o meu Nacional Querido ou o meu Glória de Vacaria (ns)? Não há sequer um meião desfiando, uma ovelha sorteada no intervalo ou mesmo o degrau de cimento que esfarela, pois até o direito de sentar no próprio estádio para ver seu time jogando uma decisão já foi usurpado. E, ademais, os garotos que iam mudar o mundo sequer têm dinheiro pra compar uma passagem até Montevidéu.)

Apresentar quatro finalistas de um mesmo país em suas duas competições é uma aberração que o continente nunca havia presenciado — nem mesmo desde os tempos mais primórdios, como diriam Hermes e Renato, quando a Supercopa (1988-1997) e a Copa Conmebol (1992-1999) entreveravam-se no calendário. Os clubes brasileiros fizeram a festa na falecida Copa Mercosul (1998-2001), três títulos em quatro edições numa disputa quase doméstica, e o São Paulo chegou ao acinte de vencer no mesmo ano, em 1993, a Libertadores e a Copa Conmebol, contra Universidad Católica e Flamengo, respectivamente. Em tempos de Sul-Americana, desde 2002, um mesmo país sequer havia conseguido conquistar três das quatro vagas nas finais.

Hoje tudo parece festa, “fim de pandemia”, predomínio futebolístico, sonho de múltiplas taças no armário dos nossos clubes e promessa de chivitos pulando na chapa em Montevidéu, e é justo que assim seja para os que miram e querem tocar as copas, mas é preciso ao menos cogitar a discussão: o futebol sul-americano está caminhando por trilhos bastante equivocados. Quem está ganhando tem o direito de não ouvir, obviamente. Mas os que pretendem mais do que participar deveriam colocar as orelhas em pé e molhar a palavra para um último argumento. Que talvez seja, de fato, a derradeira tentativa.

Footer blog Meia Encarnada Douglas Ceconello — Foto: Arte

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