Kawan Pereira nem sabia do que se tratava, na verdade. Mas o técnico, que o havia visto comemorar os gols no gramado sintético do Centro Olímpico do Gama, foi
Redação Publicado em 07/10/2021, às 00h00 - Atualizado às 14h37
Kawan Pereira nem sabia do que se tratava, na verdade. Mas o técnico, que o havia visto comemorar os gols no gramado sintético do Centro Olímpico do Gama, foi irredutível. Aqueles “mortais” para festejar revelavam talento para um esporte mais desafiador e desconhecido do que o futebol. Um talento que fez com que ele fizesse história nas Olimpíadas de Tóquio.
– Na época eu não sabia o que eram os saltos ornamentais. O treinador chegou e me disse: “vamos fazer uma seletiva para os saltos?”. Eu respondi que sim, mas nem tinha ideia do que era. Eu era só uma criança de dez anos, e para mim só foi um esporte novo. Mas acabei gostando – contou ao ge o atleta de 19 anos.
Daquela descoberta inusitada, nove anos se passaram até o último dia 7 de agosto, quando Kawan disputou em Tóquio a final olímpica da plataforma de 10m, a mais tradicional prova dos saltos ornamentais. Com um somatório de 393.85 pontos, terminou na décima posição no geral, algo que jamais havia sido alcançado por um atleta brasileiro.
Kawan Pereira termina em 10° lugar, melhor resultado do Brasil na plataforma de 10m
– Aquilo teve significado de dever cumprido. Passou um filme na cabeça de quando cheguei nos saltos, onde eu não tinha nada – afirmou.
Quando diz que nada tinha, não é força de expressão. Kawan nasceu em Parnaíba, no Piauí, cidade que fica a 337km da capital Teresina – foi o único nascido no estado a ir à última edição das Olimpíadas. O pai, Jorge Luís Pereira, deixou a família quando ele tinha apenas três anos. Coube à mãe, Antônia de Maria Monteiro Figueiredo, criar o pequeno e seus irmãos, Shawan e Amanda.
– Minha mãe sempre nos criou desde pequenos sozinha. Ela sempre foi meu pai e minha mãe e é meu orgulho. É de onde tiro minhas forças – apontou.
Atrás de uma condição financeira melhor, mãe e filhos se mudaram para Brasília quando Kawan tinha oito anos. Antônia trabalhou como empregada doméstica em casas da capital federal e de cidades vizinhas, mas os rendimentos geralmente não quitavam os boletos.
A infância complicada deixou outras lembranças amargas. Como, por exemplo, o trauma de um cotidiano que envolveu drogas e violência doméstica.
– Quando vim para Brasília, foi um período em que meu padrasto usava drogas. Sempre foi minha dificuldade. Aconteceu de a minha mãe apanhar dele, foi o momento mais difícil da minha vida. Mas minha família sempre foi guerreira, de dar a volta por cima. É bem brasileira mesmo.
Ele sacudiu a poeira e deu a tal volta por cima. Graças ao esporte. Um ano depois da mudança, Kawan fez aquela peneira improvável para os saltos ornamentais e passou.
O começo por diversão logo virou assunto sério. A brincadeira virou rotina, e ele começou a treinar diariamente. As dificuldades financeiras impediam que ele tivesse, no entanto, elementos básicos para a prática da modalidade. Como uma mochila. Ou até mesmo uma sunga.
– É até difícil de falar. Minha mãe não tinha condição de comprar uma mochila. Aí, para ir ao treino, eu pegava uma sacola de mercado, colocava uma toalhinha, e a sunga eu tinha conseguido emprestada com um treinador meu. Não era nem minha. Até me arrepio falando um pouco para falar porque foi difícil – comentou.
Apesar dos improvisos, o menino, dedicado, logo passou a participar – e ganhar – de campeonatos regionais. Em seguida, de estaduais. Em questão de meses, já fazia parte de seleções de base e passou a enxergar novas possibilidades. Um mundo todo se abriu à sua frente.
Mas o horizonte também guarda obstáculos, e Kawan encontrou um logo em sua primeira viagem internacional. Convocado para um torneio importante em Montréal, no Canadá, foi pego de surpresa com uma constatação. Se já não tinha uma mochila de costas para ir ao treino, imagine uma mala grande passar mais de uma semana na América do Norte. A solução, mais uma vez, foi contar com a solidariedade de alguém próximo.
– Tive que pedir uma mala emprestada para o meu avô [Francisco]. E, olha, era uma mala bem pequena. Todo mundo no embarque com uma mala enorme, e eu com aquela mala pequena. E estava nevando no Canadá na época, eu não tinha aqueles casacos todos que o pessoal tem para frio, tive que pedir tudo emprestado. Todas as minhas roupas eram emprestadas, a mala era emprestada, a única coisa ali minha, mesmo, era um tênis que eu tinha ganhado pouco antes da viagem. Na verdade, até tinha mais coisa minha, mas era tudo uniforme – relembrou.
O abismo social poderia desencadear uma retração em Kawan. Mas ele contou que a experiência causou justamente o contrário.
– Eu via o povo vestindo aquelas roupas descoladas, aquelas coisas todas, mas nunca me senti inferior. Eu me tornei o tipo de pessoa que se fortalece aos poucos. Vou conquistando de pouco a pouco. Se são seis horas de treino, eu faço sete. Eu sempre busquei minhas coisas, as coisas para a minha família, e nunca me deixei abalar. Pelo contrário, sempre me fortaleci – disse.
Com essa mentalidade, a partir de 2016 ele se fixou na seleção brasileira adulta. Três anos mais tarde, em 2019, conseguiu vaga para seu primeiro Campeonato Mundial de Esportes Aquáticos, em Gwangju, na Coreia do Sul, e para o Pan de Lima, onde conquistou a medalha de bronze na prova sincronizada masculina da plataforma 10m ao lado de Isaac Souza.
A bagagem adquirida ali fez com que tivesse o melhor resultado da história de um brasileiro na plataforma em Tóquio. Hoje com uma situação financeira mais cômoda – recebe bolsas e outros auxílios -, Kawan sonha grande.
– Eu penso muito em Paris 2024. Acho que fui o único atleta dos saltos no Brasil que não parou depois das Olimpíadas de Tóquio. Se eu quero alguma coisa, tenho que buscar. Não estou longe da elite, mas aqui no Brasil a gente tem pouca competição. Não tem dinheiro para isso, para aquilo, e a gente leva no nosso limite. Vai para as competições que dá. Só que minha meta é clara: ser um chinês da vida – afirmou, em alusão aos asiáticos que defendem a maior potência da modalidade.
– Pode esperar que eu vou ser medalhista olímpico.
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Globo Esporte
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