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Alto Tietê teve mais de 6,8 mil crianças registradas sem o nome do pai nos últimos cinco anos, segundo cartórios

De acordo com psicanalista, ausência paterna pode acarretar vulnerabilidades afetivas e materiais em diferentes fases da vida. Em Suzano, uma creche deixou de celebrar o Dia dos Pais para se tornar mais inclusiva.

CERTIDÃO DE NASCIMENTO - Imagem: reprodução grupo bom dia
CERTIDÃO DE NASCIMENTO - Imagem: reprodução grupo bom dia

G1 Publicado em 14/08/2022, às 15h51


Não tenho o nome dele, mas o porquê minha mãe nunca me contou. Eu tenho uma lembrança, quando eu era criança, do meu pai sempre ir me visitar, mas nunca tive contato exatamente”. O relato é de uma moradora do Alto Tietê, que preferiu não se identificar e que carrega algo comum a milhares de brasileiros. Na certidão de nascimento, apenas o nome da mãe. O pai é ausente.

Os únicos registros ficaram apenas na memória. Tentativas frustradas de aproximação por parte do homem que, por algum motivo, deixou a criação da filha a cargo exclusivo da mãe. Hoje, aos 44 anos, a mulher diz que não tem traumas e que a ausência do genitor foi preenchida pelo esforço materno de educar e garantir que nada lhe faltasse.

De acordo com dados da Associação de Registradores Naturais(Arpen), nos últimos cinco anos, mais de 6,8 mil nascidos vivos foram registrados sem o nome do pai pelos cartórios do Alto Tietê. Crianças que precisarão lidar com as consequências afetivas e materiais da falta do genitor, tendo que encarar, ainda, o estigma social que as colocará em posição de vulnerabilidade.

Porém, algumas práticas mostram que esse cenário pode ser amenizado pelo ensino inclusivo, que aos poucos abre os olhares para o verdadeiro significado de família. Em escolas da região, o Dia dos Pais já não é mais tema de festa ou de lembrancinha e muitos alunos não precisam enfrentar o constrangimento de não ter quem homenagear nessa época do ano (confira o relato abaixo).

No Dia dos Pais, celebrado neste domingo (14), o g1 escuta o outro lado e mostra que a ausência e o abandono paterno têm consequências, mas que o acolhimento de quem está ao redor, aliado à conscientização social, pode suprir muitas dessas dores, como explica a psicanalista e educadora parental Thais Basile.

“Muitas vezes, a família estendida desse genitor, que não está presente, foi abandonador, vai fazer as vezes de apresentar o mundo para essa criança. Vai apresentar bons exemplos, bons valores. A criança precisa exatamente disso: de pessoas que se interessem por ela, que querem a escutar, tem desejo de estar perto dela, que se interessem por ela. Não importa o gênero”.

Ausência paterna em dados

Entre 2015 e 2017, o índice de certidões de nascimento sem o nome paterno chegou a 6% nos cartórios do Alto Tietê. Em 2021, apesar da queda nos nascimentos, o indicador atingiu o percentual mais alto. Das mais de 20,9 mil certidões, 6,5% foram registradas com a indicação de pai ausente.

Segundo os dados da Arpen, Ferraz de Vasconcelos e Itaquaquecetuba lideram o índice. Ao todo, 7,1% dos nascidos nos municípios ao longo deste período não receberam o nome do pai. Em seguida está Biritiba Mirim, com 6,9% do total.

Já o menor índice foi registrado por Arujá, com 4,5% de todos os registros. Na sequência estão Salesópolis, com cerca de 4,7%, e Santa Isabel, com 4,8% do total de certidões de nascimento emitidas no cartório da cidade.

Certidões de nascimento emitidas pelos cartórios do Alto Tietê entre 2017 e 2021

CIDADENASCIDOSPAIS AUSENTES
Arujá10.378468
Biritiba Mirim1.462102
Ferraz de Vasconcelos12.333876
Guararema2.007109
Itaquaquecetuba24.4311.749
Mogi das Cruzes32.2421.761
Poá5.445335
Salesópolis85541
Santa Isabel3.611176
Suzano21.2001.282

Reinventar para incluir

Desenhos que lembram super-heróis, lembrancinhas em papel azul e coreografias bem ensaiadas. Mesmo antes de agosto chegar, tudo é pensado com carinho para homenagear os pais. Comportamento que faz parte da rotina de muitas creches e escolas de ensino infantil. De muitas, mas não de todas.

Na Escola Municipal Professor Darcy Corrêa Gonçalves, em Suzano, não existe comemoração de Dia dos Pais. Não que eles não mereçam. É que para o diretor pedagógico Roverson Rodrigues Ferreira, o gesto não terá nada de bonito se causar constrangimento ou tristeza entre os pequenos que não têm quem celebrar.

“Se a gente tem essa perspectiva de que a escola é pensada por adultos, mas para crianças, eu não posso replicar um modelo que exclua qualquer um deles. Aqui, por exemplo, tenho 200 crianças dentro de todo tipo de organização familiar. Se eu faço uma festa aqui pros dias dos pais, eu sei quais crianças não virão”, explica.

“A escola tem que ser justa. Tenho que tratar todos com o mesmo cuidado, o mesmo carinho, respeitando suas diferenças. Então, não faz sentido produzir uma lembrancinha pro Dia dos Pais. Imagina ter uma criança que vai entregar pro pai, com toda alegria, enquanto outra na mesma sala não tem pra quem entregar”.
Lembrancinha de Dia dos Pais feita no ano de 2013; creche deixou de fazer esse tipo de atividade em 2022 — Foto: Roverson Rodrigues Ferreira/Arquivo Pessoal
Lembrancinha de Dia dos Pais feita no ano de 2013; creche deixou de fazer esse tipo de atividade em 2022 

“[Aqui entre os alunos] temos família sem figura do pai, sem figura da mãe, famílias com formações homoafetivas. Nas escolas de periferia, na maioria das vezes, a organização familiar está ligada à figura central da avó. E essa é uma data que tem cunho comercial, dentro da contradição do sistema capitalista. Não faz sentido trazer isso pra dentro da escola”.

Inclusão é o motivo e, também, a motivação. Atuando na unidade desde 2019, Roverson, que também é pai, diz que mais importante do que praticar os tradicionalismos é garantir com que todos os alunos se sintam envolvidos e respeitados. Exatamente por isso, a escolha em não celebrar a data dedicada aos genitores não é a única mudança aplicada na instituição.

A reunião de pais passou a ser chamada de reunião do responsável. Um ajuste simples, mas que faz a diferença. A festa junina, que para os católicos celebra São João, virou um evento dedicado à cultura nordestina. Já o final de ano, que poderia ser permeado pelo Natal Cristão, dá lugar a uma apresentação cultural pelos meses que se passaram.

“Uma coisa que a gente sempre discute são dois pontos. A escola é um elemento imprescindível na defesa da democracia no país. É eu conseguir olhar pra todo mundo, todo mundo ser atendido. Se a escola é esse espaço privilegiado, nossa perspectiva é olhar para o que está na constituição. A escola é direito de todos, dever do estado e da família. Qual família? É a que a criança tem”.
Creche de Suzano prioriza realização de atividades que incluam os membros da família e contribuam para a criação de 'lembranças' — Foto: Roverson Rodrigues Ferreira/Arquivo Pessoal
Creche de Suzano prioriza realização de atividades que incluam os membros da família e contribuam para a criação de 'lembranças' 
A creche atende crianças de 0 a 3 anos e não é a única do Alto Tietê que deixou de celebrar o Dia dos Pais. Segundo um levantamento realizado pelo g1outras unidades de ensino dos municípios de Guararema e Ferraz de Vasconcelos e Suzano passaram a adotar celebrações mais inclusivas, como o Dia da Família ou o Dia de Quem Cuida de Mim.

A figura paterna não é mais o centro da família

Por décadas, o pai foi visto como o centro da família. Era o homem, provedor da esposa e dos filhos, quem levava o nome e a honra daquele núcleo. No entanto, os tempos mudaram. Hoje, as mulheres que se dedicam a criar os filhos sem a companhia do genitor, chamadas mãe-solo, ganham o reconhecimento. A sociedade também tem enxergado as relações homoafetivas, além de muitos outros grupos e jeitos familiares.

“A gente sabe que a família tradicional brasileira não é mais pai, mãe e filhinhos. A gente precisa pensar em inclusão, muito mais do que em exclusão e muito mais do que tradição pela tradição. E sim, entender a realidade da criança brasileira e do adolescente brasileiro. É muito bacana que a gente pense nisso”, comenta a psicanalista Thais Basile.

Para ela, rever datas comemorativas que abordam a família, especialmente o Dia dos Pais, é essencial e urgente. Com o alto índice de famílias monoparentais femininas, onde existe abandono paterno e as mães são as únicas responsáveis pela criação dos filhos, levar este tipo de festejo para as escolas pode levar os pequenos a reviverem situações traumáticas.

“Os problemas residem não só na falta de inclusão que essa tradição pode carregar, mas também na repetição e na reedição de alguns traumas que essas crianças revivem com abandono paterno, com morte do pai e também, uma coisa, que é super delicada, mas eu preciso mencionar, que são os abusos paternos. A gente sabe que o abuso sexual intrafamiliar, infelizmente, são perpetrados por pais e padrastos no topo do ranking”.

“[As crianças] não podem ser expostas o mês inteiro ou até no mês anterior, com ensaio de festinha. Elas não podem ser retraumatizadas dentro da escola. A escola tem que ser o lugar transformativo e não da reprodução de crenças que perdem o sentido. Isso não quer dizer que a gente não vai dar valor aos pais que fazem seus trabalhos. Eles podem ser comemorados de outras maneiras”.

Isso não significa que a homenagem tenha que ficar de lado. Os pais que cumprem seu papel podem ser vistos com admiração. Mas, assim como é feito em escolas do Alto Tietê, Thais recomenda que as instituições adotem temáticas mais amplas, que possam abranger outros membros da família. Dessa forma, todos os alunos podem se sentir incluídos.

“A criança vai entender que o importante é ter esse cuidado com o outro, é ter essa noção de que família é quem cuida, quem está perto, quem ama, quem considera. Muito menos a ver com laços sanguíneos ou laços tradicionais, e muito mais a ver com o que acontece no dia a dia, com esse amor transformado em ação”, completa.

Importância do pai

Thais explica que a psicanálise vê no pai a função de ‘quebrar’ parte da relação exclusiva desenvolvida entre o bebê e a mãe. Ele é responsável por apresentar outras formas de viver. Do ponto de vista contemporâneo das relações heterossexuais, o homem também deveria dividir responsabilidades com a mãe, garantido que a criança tenha acesso às estruturas necessárias para seu desenvolvimento.

Quando esse papel não é executado, o filho pode sofrer consequências. Porém, a especialista lembra que o problema não está, necessariamente, na ausência da figura masculina, mas sim no abandono causado por quem deveria estar ao lado. “Eu vejo dois efeitos grandes em crianças que foram abandonadas pelos pais. Primeiro é efeito material na vida dessa criança. Quem fica, sempre fica sobrecarregado. Em geral é a mãe”.

“Essa mãe pode estar muito menos disponível materialmente, muito menos disponível em tempo do que se tivesse outra pessoa, que seria o genitor, dividindo essa carga grande. Os efeitos psíquicos também podem ser grandes. Muito mais pela narrativa social que é muito deletéria, muito na base de que é uma família desestruturada, uma criança abandonada. Então, ela se vê nesse lugar, por conta dessa narrativa social, nesse lugar de vítima”, completa.

Mais uma vez, rede de apoio é indispensável. Seja por parte dos avós, tios, ou de quem estiver por perto: a atenção plena pode atenuar a falta do pai. No caso da mulher citada no início dessa reportagem, o cuidado da mãe foi mais do que suficiente.

“Na última vez que ele [o pai biológico] foi me ver, eu tinha uns 27 ou 28 anos. Foi a última vez que ele foi na minha porta. Ele queria conversar comigo, mas eu falei que não queria aproximação com ele. Eu fui criada com a minha mãe só. Falava que meu pai era a minha mãe”.

“Não me afetou em nada porque minha mãe preencheu esse vazio. Não senti falta dele, não senti falta de um pai. Minha mãe fazia tudo por mim, foi quem me criou. Ela foi minha mãe, meu pai, ao mesmo tempo. Ela me deu educação, graças a Deus. Ela não deixava nada faltar pra mim e soube me criar”, conclui.

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