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Angela Merkel: a líder prática e conciliadora que marcou o início do século

Entre os vários choques políticos que atingiram a Europa neste início de século 21 — da crise econômica que abalou o euro à saída do Reino Unido da União

Angela Merkel: a líder prática e conciliadora que marcou o início do século
Angela Merkel: a líder prática e conciliadora que marcou o início do século

Redação Publicado em 26/09/2021, às 00h00 - Atualizado às 10h38


Entre os vários choques políticos que atingiram a Europa neste início de século 21 — da crise econômica que abalou o euro à saída do Reino Unido da União Europeia, o chamado Brexit —, poucos foram tão previsíveis e geraram tanta ansiedade como o fim da era Merkel na Alemanha.

Em outubro de 2018, veio o anúncio daquilo que todos sabiam que aconteceria um dia: Angela Merkel deixaria a chefia do governo alemão em 2021.

“Eu não vou buscar nenhum posto político depois que meu mandato acabar”, disse a alemã, em entrevista coletiva. “Chegou a hora de abrir um novo capítulo.”

A ansiedade veio em seguida, ao lado de muita especulação. Afinal, Merkel, para o bem e para o mal, era garantia de significativas segurança e estabilidade.

Crises de refugiados, terrorismo, separatismos, extremismos — tudo que a União Europeia temia parecia ser mais contornável nas mãos da poderosa chanceler alemã.

Chegado o momento da despedida, após 16 anos no comando da maior economia europeia, é possível ter uma ideia ainda mais clara de como e por que Merkel tornou-se a mais importante figura política do continente — a ponto de muitos temerem o futuro sem a sabedoria de sua liderança.

Origens no comunismo

A primeira-ministra alemã Angela Merkel ao longo de sua carreira política, entre os anos de 1991 a 2016 — Foto: DPA via AFP/Arquivo

A primeira-ministra alemã Angela Merkel ao longo de sua carreira política, entre os anos de 1991 a 2016 — Foto: DPA via AFP/Arquivo

Uma das maiores qualidades políticas de Angela Merkel sempre foi sua capacidade de navegar entre opostos e mediar conflitos políticos, numa era em que os extremos ganham cada vez mais espaço.

Tal habilidade está diretamente ligada a sua origem: criada na comunista Alemanha Oriental, num ambiente familiar cristão luterano, ela foi uma jovem universitária num ambiente que promovia o marxismo e as ligações com a União Soviética.

Em tal realidade, ela estudou física, concluiu um doutorado em química quântica e estudou russo, adquirindo completo domínio da língua que na época era associada ao comunismo.

Vinda da chamada Cortina de Ferro e criada num ambiente luterano, Merkel faria carreira política na unificada Alemanha dentro da democracia cristã.

Seria uma líder conservadora com um olhar atento a questões sociais, tendo desde o início de sua carreira a capacidade de equilibrar diferentes interesses e necessidades.

Nascida em 17 de julho de 1954, em Hamburgo (então Alemanha Ocidental), com o nome de Angela Kasner, sua mudança para o lado oriental ocorreu quando tinha apenas três meses de idade, e seu pai aceitou a missão de assumir um cargo de pastor em Perleberg.

A futura líder alemã passou sua juventude, foi estudante universitária e iniciou carreira científica no Estado comunista.

Cristã dedicada, foi casada por pouco tempo — a união em 1977 com o colega de universidade Ulrich Merkel, que lhe deu o nome com o qual ganharia poder e fama, terminou em divórcio após quatro anos.

Angela Merkel integrou o movimento por democracia na Alemanha Oriental. Sua carreira política, no entanto, somente teria início após a queda do Muro de Berlim, em 1989.

Foto de arquivo mostra cidadãos da Alemanha Ocidental ainda em vigília em cima do Muro de Berlim em frente ao Portão de Brandemburgo na manhã do dia seguinte à queda, em 10 de novembro de 1989 — Foto: Arquivo/Reuters

Foto de arquivo mostra cidadãos da Alemanha Ocidental ainda em vigília em cima do Muro de Berlim em frente ao Portão de Brandemburgo na manhã do dia seguinte à queda, em 10 de novembro de 1989 — Foto: Arquivo/Reuters

  • Especial g1, 30 anos depois: Marcas do Muro de Berlim

Num período de transição, ela atuou como porta-voz do governo alemão-oriental, após a realização de eleições democráticas.

Em 1990, porém, a Alemanha finalmente voltaria a ser um só país. Dois meses antes da reunificação, Merkel passou a integrar o partido governista conservador CDU, a União Democrata Cristã — um caminho que respeitava sua origem familiar luterana.

Na época o partido era liderado pelo chanceler Helmut Kohl, um gigante da política europeia que entrou para a história como um símbolo do fim da divisão alemã e da Guerra Fria.

Merkel avançou dentro da legenda, ocupando os cargos de ministra das Mulheres e da Juventude (1991 a 1994) e do Meio Ambiente (1994 a 1998).

Na foto, de 30 de abril de 1991, o então chanceler alemão Helmut Kohl aparece atrás de Merkel, na época ministra da Mulher e da Juventude da Alemanha, antes de uma reunião de gabinete na Chancelaria em Bonn, na Alemanha. — Foto: Fritz Reiss/AP

Na foto, de 30 de abril de 1991, o então chanceler alemão Helmut Kohl aparece atrás de Merkel, na época ministra da Mulher e da Juventude da Alemanha, antes de uma reunião de gabinete na Chancelaria em Bonn, na Alemanha. — Foto: Fritz Reiss/AP

Em 1998, a CDU perdeu as eleições para os social-democratas, e Kohl foi substituído como chanceler por Gerhard Schröder.

Já fora do comando do partido, em 1999, Kohl foi atingido em cheio por um escândalo de financiamento partidário ilegal.

Merkel destacou-se na época, ao pedir publicamente que Kohl, ainda integrante do Parlamento, renunciasse a sua cadeira e colocasse um fim a sua carreira política — o que ele só faria em 2002.

Em 2000, Merkel tornou-se líder da CDU — fato marcante para um partido cristão, associado a valores familiares e que passou a ser comandado por uma mulher divorciada e sem filhos.

Após cinco anos na oposição, os democratas-cristãos voltaram ao poder em 2005, e Angela Merkel iniciou sua longa carreira como chanceler.

Foi a primeira mulher a comandar o país, que pela primeira vez tinha como chefe de governo alguém criado sob o comunismo do lado oriental.

Sua vitória foi histórica para a Alemanha, e sua longa permanência no cargo seria marcante para a Europa e o resto do mundo.

Convivência com adversários

Em 22 de novembro de 2005, a recém-eleita Merkel faz o juramento do cargo de chanceler no Parlamento alemão, em Berlim. — Foto: Fritz Reiss/AP

Merkel chegou ao poder aos 51 anos, numa época de crescimento econômico global, mas dificuldades na economia alemã, que tentava se modernizar por meio de reformas estruturais.

A geopolítica era marcada por tensões e crises provocadas pela chamada Guerra ao Terrorismo, iniciada pelos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001.

A capacidade de Merkel de equilibrar diferentes pressões políticas foi testada logo de início.

Após um resultado indefinido no pleito de 2005, Merkel só conseguiu ocupar o posto de chanceler ao fazer um governo de coalizão com seus históricos adversários, o SPD, partido social-democrata.

Sob o comando de Gerard Schröder, os social-democratas eram governo havia sete anos e, ironicamente, foram os responsáveis por implementar reformas para enxugar o Estado de bem-estar social do país.

O ex-primeiro-ministro alemão Gerhard Schroeder transmite o cargo à recém-eleita premiê Angela Merkel, em foto de 22 de novembro de 2005 — Foto: Michael Hanschke/DPA via AFP

No médio e longo prazos, as reformas criaram condições para uma queda sistemática do desemprego, mas inicialmente a taxa subiu — ultrapassando 11% em 2005 —, o que dificultou a vida de Schröder nas urnas.

Derrotado numa eleição apertada, o SPD perdeu o posto de chanceler, mas não saiu do governo.

O acordo de coalizão deu aos social-democratas oito ministérios, incluindo alguns dos postos mais importantes, como o das Finanças, o do Exterior, o da Saúde e o do Meio Ambiente.

A CDU de Merkel, a nova chanceler, ficou com apenas seis, incluindo Defesa, Justiça e Educação.

“Nós queremos fazer com que as coisas avancem neste país. É por isso que eu me refiro a uma coalizão de novas possibilidades”, afirmou na época a recém-empossada chefe de governo.

Estava assim consolidada uma das principais características de Merkel: o pragmatismo. Ela provou ser capaz de dialogar com adversários e se adaptar a situações adversas, inclusive governando com adversários.

Merkel parecia disposta a fazer o possível para fazer o acordo dar certo e, com isso, solucionar os problemas nacionais mais urgentes.

Em seu primeiro discurso no Parlamento, conhecido como Reichstag, ela deixou clara sua prioridade: “Vamos soltar os freios do crescimento”.

A coalizão que governou a Alemanha entre 2005 e 2009 acabou sendo chamada por muitos de um governo de “direita-esquerda”, em que a chanceler buscou promover crescimento econômico e abraçou políticas progressistas. Entre elas, o abandono da energia nuclear, exigido pelo SPD e pelo Partido Verde, também membro da grande coalizão.

Pipa com a inscrição “Energia nuclear? Não, obrigado” reforça protesto de ativistas contra a energia nuclear no país. — Foto: Michael Sohn / AP Photo

Apesar da oposição da CDU e da própria Merkel, o governo alemão anunciou que fecharia suas usinas nucleares em 2021, atendendo a um desconforto da opinião pública alemã que vinha desde o acidente em Chernobyl, na Ucrânia, em 1985.

Administrar os interesses da CDU e do SPD não era fácil, mas Merkel mostrou notável habilidade.

“Após tomar posse como líder do governo da grande coalizão em 2005, Merkel tem tido que trabalhar duro para achar um denominador comum entre dois partidos que têm brigado durante a maior parte dos últimos 60 anos”, escreveu a rede alemã Deutsche Welle em junho de 2007.

O noticiário alemão usou essas palavras para anunciar que Merkel havia conseguido o que parecia impossível: um acordo entre os dois partidos para a expansão do salário mínimo na Alemanha.

O SPD pressionava pela adoção de um mínimo nacional, enquanto a CDU de Merkel rejeitava a ideia.

Até então válido apenas na construção civil e trabalhadores de limpeza, as legendas concordaram que a medida passasse a valer para ao menos dez novas áreas da economia.

No cenário internacional, Merkel foi reconhecida por sua liderança logo de início.

Em agosto de 2006, a revista Forbes a escolheu como a mulher mais poderosa do mundo — escolha que a publicação repetiria, seguidamente, pelos próximos três anos.

“Desde que tomou posse, Merkel conquistou respeito no cenário mundial e apelo popular na Alemanha por sua discreta diplomacia”, escreveu a Forbes no texto que acompanhava a lista das mais poderosas mulheres.

No ano seguinte, poucos dias antes de obter o acordo pelo salário mínimo, seu poder de negociação e persuasão foi conhecido por outras lideranças internacionais.

Como anfitriã da reunião do G-8 de 2007, em Heiligendamm, na Alemanha, Merkel conseguiu um acordo inicial pelo combate às mudanças climáticas, convencendo o então presidente americano, George W. Bush, a finalmente se aproximar da causa, que antes rejeitava.

“O melhor que nós poderíamos conseguir foi conseguido”, disse Merkel na época, segundo a Deutsche Welle.

Popularidade

A chanceler alemã Angela Merkel é vista com uma máscara facial durante visita à Renânia do Norte-Vestfália, o estado mais populoso da Alemanha, em Duesseldorf, na terça-feira (18)  — Foto: Martin Meissner/AP

A chanceler alemã Angela Merkel é vista com uma máscara facial durante visita à Renânia do Norte-Vestfália, o estado mais populoso da Alemanha, em Duesseldorf, na terça-feira (18) — Foto: Martin Meissner/AP

Os quatro anos de convívio com os adversários social-democratas levou muitos a questionar as verdadeiras credenciais conservadoras de Merkel.

Estaria a ex-cidadã da Alemanha Oriental se aproximando demais da esquerda?

Na verdade, o realismo imposto pela coalizão com a centro-esquerda foi positivo para a chanceler.

Seu governo “direita-esquerda” mostrou que Angela Merkel sabia como agradar a gregos e troianos — ou seja, alemães de todos os campos políticos.

Ela evitou ser demonizada como uma conservadora neoliberal, sem perder o apoio tradicional de sua base partidária.

Na prática, ela carregou sua CDU na direção do centro, o que serviu como uma boa preparação de terreno para as eleições que ocorreriam em 2009.

Merkel acumulou popularidade por meio de sua capacidade e disposição de explicar temas complexos, além de se mostrar determinada e capaz diante de grandes desafios, como a economia.

A chanceler e sua coalizão foram bem-sucedidos em atacar os problemas econômicos do país — o desemprego logo caiu, de 12% no começo de 2006, para 9% em meados do ano seguinte.

Em setembro de 2008, no entanto, veio a falência do banco americano Lehman Brothers, que marcou a explosão da crise financeira global — que se tornaria uma crise econômica, social e política internacional, com recessão global e uma situação dramática em partes da Europa.

A liderança de Merkel nos dois primeiros anos da crise foi bem avaliada pela opinião pública alemã.

Mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB) despencando 5,7% em 2009, a taxa de desemprego ficou praticamente a mesma do ano anterior — 7,74% em 2009, contra 7,53% em 2008.

Apesar de o ministro das Finanças do governo de coalizão, Peer Steinbrück, ser do SPD, Merkel foi a mais beneficiada por tal desempenho.

Na época das eleições parlamentares de setembro de 2009, sua taxa de aprovação era de 60%.

Essa força traduziu-se em votos nas urnas. Sua CDU ficou em primeiro lugar e desta vez conseguiu formar uma coalizão com alinhamento ideológico, de centro-direita, com a CSU (União Social Cristã da Bavária) e o FDP (Partido Democrático Livre).

Em sua primeira análise após os resultados, a BBC News trouxe a avaliação de Detmar Doering, do Instituto Liberal. Ele destacava o pragmatismo de Merkel, que inspirava confiança no eleitorado.

“Os eleitores alemães não são estúpidos — eles não querem uma Britney Spears como chanceler da Alemanha, eles querem uma líder séria em quem eles possam confiar. Merkel sabe o que ela está fazendo.”

Num governo de unidade ideológica, formado por partidos conservadores, a chanceler ficou autorizada a governar mais de acordo com suas crenças e preferências.

A vítima mais proeminente dessa nova realidade política foi o plano de fechar as usinas nucleares do país, caminho tomado sob influência dos social-democratas e verdes que participavam do primeiro governo Merkel.

Em agosto de 2010, a chanceler anunciou uma revisão da medida: as 17 usinas nucleares do país seriam prorrogadas por mais 15 anos além de 2021, ano em que seriam inicialmente interrompidas.

“A energia nuclear é desejável como uma tecnologia transitória”, disse a alemã na época. A decisão tinha o apoio do FDP, partido de centro-direita que compunha o governo.

Como informou o jornal britânico The Guardian, porém, a medida era impopular: segundo uma pesquisa da época, 56% dos alemães eram contra estender a vida útil das usinas, por medo de acidentes e ações terroristas.

Crise europeia

Na foto, de janeiro de 2009, Merkel aparece com a a então ministra da Família da Alemanha, Ursula von der Leyen (hoje presidente da Comissão Europeia), e a editora Alice Schwarzer em um evento comemorando os 90 anos do direito ao voto das mulheres em Berlim. — Foto: Michael Sohn/AP

Até 2009, a crise financeira era sentida a nível nacional, e Merkel passara no teste.

Seus desdobramentos, porém, levariam a uma recessão global e uma crise continental.

A chanceler teve de assumir um papel que ainda não exercera plenamente: o de líder europeia. À frente da maior economia do continente, Merkel assumiu a liderança nas decisões da União Europeia.

A chanceler tornou-se a cara da crise financeira na Europa, em seus aspectos positivos e negativos. Do lado positivo, a alemã sabia de sua responsabilidade: precisava encontrar soluções para os maiores desafios econômicos vividos pelo bloco até então.

Do negativo, também sabia que suas decisões teriam de considerar os interesses dos alemães — o que associou seu nome, na cabeça de muitos, à fria imposição de medidas com altos custos sociais para as nações menos desenvolvidas da União Europeia.

Os maiores desafios econômicos estavam nos países-membros que, nas duas décadas anteriores, haviam desfrutado de admiráveis saltos econômicos e elevação do padrão de vida de suas populações.

Grécia, Espanha, Irlanda, Itália e Portugal haviam se tornado, em pouco tempo, forças econômicas alimentadas por dívidas. Suas riquezas dependiam da continuação da desenfreada ciranda financeira, que parecia ter chegado ao fim com a crise das hipotecas, que levou à crise das dívidas.

A partir de maio de 2010, o bloco socorreu esses países-membros, por meio da Facilidade Europeia para Estabilidade Financeira (EFSF) — outros mecanismos viriam nos anos seguintes, somando centenas de bilhões de euros.

Em pouco tempo, Merkel passou a ser vista com desconfiança, criticada e até mesmo odiada por muitos.

Na Alemanha, parte da imprensa e da opinião pública reclamava que o país tivesse de pagar para retirar a Grécia da crise. Isso, entretanto, não impediu que em outubro de 2011 Merkel conseguisse aprovar no Parlamento — por 503 votos a 89 — a participação alemã na ajuda a nações europeias.

Dois meses depois, num discurso no Reichstag, ela justificou e defendeu a liderança alemã no processo de socorro a países-membros da Zona do Euro. “Criar uma Europa estável de forma duradoura é a tarefa histórica da atual geração de políticos”, disse a chanceler.

Já na Grécia, a imposição de cortes drásticos nos gastos públicos, como contrapartida para a oferta da ajuda financeira, fez com que o rosto de Merkel se tornasse presença constante em protestos violentos em Atenas.

Muitas vezes, seu nome e foto eram associados à palavra “nazista” e à suástica, símbolo do regime nazista de Adolf Hitler.

Para os manifestantes gregos, Merkel representava a opressão da União Europeia sobre integrantes mais frágeis do bloco.

Em outubro de 2012, Merkel visitou a Grécia, o que levou dezenas de milhares às ruas da capital grega para protestar contra sua presença.

Trabalhadores municipais marcham em um ato antiausteridade no centro de Atenas em 2012. — Foto: Reuters/John Kolesidis

Trabalhadores municipais marcham em um ato antiausteridade no centro de Atenas em 2012. — Foto: Reuters/John Kolesidis

“Merkel tornou-se uma figura odiada na Grécia, devido aos cortes de gastos impostos sobre o país em troca dos prometidos empréstimos e alívio de dívida no valor de 347 bilhões de euros”, escreveu a rede francesa France 24 durante a visita.

Determinada, Merkel afirmou em Atenas: “Estou profundamente convencida de que este duro caminho vale a pena, e a Alemanha quer ser um bom parceiro. Muito já foi conseguido. Ainda há muito a fazer, e Alemanha e Grécia trabalharão juntas de forma muito próxima”.

Apesar do remédio amargo contra a crise, Merkel, sua Alemanha e a União Europeia conseguiram o que chegou a parecer impossível: evitar que a Grécia deixasse a Zona do Euro.

Com isso, a chanceler foi creditada com o feito de ter salvado a moeda única europeia, o que até mesmo um de seus ferrenhos críticos na época, o economista socialista grego Yanis Varoufakis, admite ser verdade.

“É verdade que, no final, ela foi responsável por manter a Zona do Euro unida, porque, se a Grécia tivesse saído, eu não acredito que teria sido possível mantê-la”, disse Varoufakis, em setembro de 2021, à correspondente Katya Adler, da BBC News.

Varoufakis, porém, questionou o que chamou de falta de plano para o futuro da união monetária.

“Ela nunca teve uma visão sobre o que fazer com a Zona do Euro depois que ela a tivesse salvado, e a maneira com que ela a salvou tornou-se muito desagregadora. Tanto dentro da Alemanha como dentro da Grécia.”

Terceira vitória

Merkel, a única mulher e única com roupa colorida, posa de verde em uma foto com líderes mundiais em uma reunião do G8 na Irlanda do Norte em 2013. — Foto: Matt Dunham/AP

Merkel, a única mulher e única com roupa colorida, posa de verde em uma foto com líderes mundiais em uma reunião do G8 na Irlanda do Norte em 2013. — Foto: Matt Dunham/AP

Com a crise das dívidas na Europa encaminhada, embora longe de estar completamente resolvida, Angela Merkel disputaria uma nova eleição geral em setembro de 2013.

Dois anos antes, longe dali, uma tragédia de grandes proporções ajudaria a chanceler em seu caminho rumo a mais uma vitória nas urnas.

Em março de 2011, um terremoto próximo ao litoral do Japão causou um enorme tsunami, cujas ondas gigantes atingiram o reator nuclear de uma usina em Fukushima.

O desastre nuclear, em que o vazamento de radiação levou à evacuação de mais de 150 mil habitantes, teve um impacto imediato na chanceler alemã.

Apenas quatro dias depois do acidente, Merkel anunciou o fechamento de 7 das 17 usinas nucleares da Alemanha — as que começaram a operar antes do fim de 1980.

A decisão da chanceler expôs outra de suas habilidades políticas: a de mudar de opinião diante de uma nova realidade e da pressão da opinião pública.

Logo depois do acidente no Japão, dezenas de milhares de alemães realizaram protestos contra a decisão de Merkel, de 2010, de adiar por ao menos 15 anos o fechamento das usinas do país.

Segundo a Deutsche Welle informou, em 15 de março de 2011, “até 80% dos alemães são agora contra a decisão de Merkel de estender a energia nuclear, enquanto 72% dizem que os sete mais velhos reatores da Alemanha precisam ser fechados imediatamente”.

A decisão não foi resultado de consultas da chanceler e consenso entre partidos, como em outras oportunidades.

Merkel mostrou saber tomar uma atitude vital sozinha e rapidamente, como lembrou o jornalista Jens Thurau, da Deutsche Welle.

“Tendo construído uma reputação de sempre buscar o consenso, ela decidiu sozinha colocar um fim à energia nuclear na Alemanha. Contra os desejos de seu partido, para o horror do setor de energia e do partido da coalizão liberal.”

Ciente do estado de espírito da opinião pública, a chanceler deu um passo a mais em outubro de 2011, ao anunciar a decisão de fechar todas as usinas nucleares até 2022.

O governo prometeu apostar ainda mais em fontes de energia renováveis — e Merkel eliminou um potencial problema para sua campanha eleitoral em busca de um terceiro mandato, no pleito de 2013.

Admirada pela população e com bons resultados a exibir, Merkel chegou com força à disputa eleitoral.

A economia, em especial, ia relativamente bem. É verdade que, após dois anos de forte recuperação em 2010 e 2011, o PIB quase não crescia — 0,4% em 2012 e 0,4% em 2013. O desemprego, no entanto, continuava caindo, chegando a 5,2% no ano do pleito.

Resultado: o partido de Merkel venceu as eleições parlamentares, novamente seguido pelo SPD, agora liderado por Steinbrūck, seu antigo ministro das Finanças.

As características do parlamentarismo, porém, fizeram com que Merkel tivesse que, mais uma vez, governar com seus adversários.

Seu antigo parceiro de governo, o FDP, foi tão mal que ficou fora do Parlamento, o que obrigou a chanceler a costurar uma nova coalizão com o SPD.

Com uma diferença: os social-democratas tinham menos poder de barganha que em 2005 e tiveram uma participação bem menor no governo.

Após três meses de negociações, o terceiro mandato de Merkel como chanceler começou em dezembro de 2013.

A líder alemã novamente seguiu na direção da centro-esquerda, aceitando medidas de caráter social exigidas pelo SPD – como um salário mínimo nacional para todos.

O pêndulo político de Merkel continuou a balançar, testando sua grande capacidade de navegar por diferentes campos da política.

Imigração e terrorismo

Migrantes são vistos andando da fronteira entre Alemanha e Áustria, em 2015, para o primeiro ponto de registro no território alemão perto da vila de Wegscheid. — Foto: Christof Stache/AFP

Migrantes são vistos andando da fronteira entre Alemanha e Áustria, em 2015, para o primeiro ponto de registro no território alemão perto da vila de Wegscheid. — Foto: Christof Stache/AFP

Em sua nova convivência com seus adversários social-democratas no governo, Merkel continuou equilibrando-se bem.

Em abril de 2014, ela cumpriu um dos principais pontos do acordo de coalizão com o SPD ao aprovar a adoção do salário mínimo nacional – na época, de 8,50 euros por hora.

Apesar de contrária aos desejos do partido, a medida reforçava a imagem “direita-esquerda” que ajudou a manter a chanceler por tantos anos no poder.

Sua capacidade de lidar com problemas de forma humana ficou ainda mais visível em 2015, em meio à crise europeia de refugiados.

Uma onda migratória sem precedentes, intensificada pela guerra civil na Síria que levaria à saída de mais de 6 milhões de sírios de seu país, fez com que centenas de milhares de pessoas chegassem às fronteiras da Europa.

Com a Alemanha recebendo um grande número de refugiados e diante do que parecia ser uma situação sem solução, Merkel pronunciou uma frase que entraria para a história: “Wir schaffen das” — “Nós conseguimos fazer isso”, ou simplesmente “Nós damos um jeito”, disse ela em 31 de agosto de 2015.

A frase referia-se a como a chanceler pretendia cumprir o que acabara de prometer: receber todos os refugiados do conflito sírio que quisessem entrar e viver na Alemanha.

Ela alegou tratar-se de uma situação excepcional e conclamou outras nações europeias a também abrirem suas fronteiras aos refugiados.

“Se a Europa fracassar na questão dos refugiados, sua conexão próxima com direitos civis universais será destruída”, disse ela, citada pelo jornal The Guardian.

Merkel previu que, até o fim de 2015, o país receberia cerca de 800 mil refugiados. Recebeu cerca de 1 milhão.

A decisão de Merkel foi polêmica na Alemanha, e muitos passaram a temer um crescimento da popularidade de movimentos de extrema-direita nacionalista que se opunha à chegada e permanência de imigrantes.

Nas primeiras horas de 2016, uma série de incidentes em cidades alemãs deu munição aos críticos da chanceler.

Durante as festas de rua para marcar a chegada do novo ano, centenas de mulheres foram atacadas sexualmente, incluindo casos de estupro.

As primeiras denúncias sobre ataques vieram de Colônia, onde centenas de incidentes foram registrados, a maioria em torno da catedral da cidade, durante a queima de fogos.

A prefeita de Colônia, Henriette Reker, chamou os crimes de “monstruosos”.

Outras cidades, como Frankfurt, Düsseldorf e Hamburgo, também registraram agressões de natureza sexual.

Segundo relatos, os criminosos eram aparentemente de origem africana ou árabe e estariam embriagados, o que reforçava o temor de muitos de que imigrantes não conseguiriam se integrar à sociedade alemã.

Merkel sentiu a pressão, evidenciada em protestos contra imigração dias após os incidentes.

Em janeiro de 2016, a chanceler propôs leis mais duras para expulsar do país refugiados que cometessem crimes – até então, apenas aqueles condenados a ao menos três anos de prisão eram enviados a seus países de origem.

O tema, no entanto, abalou a confiança de muitos alemães em Merkel.

Segundo pesquisa do instituto Infratest dimap, publicada pela Deutsche Welle em setembro de 2016, cerca de 45% da população aprovava o trabalho da chanceler, o mais baixo número desde 2011.

O levantamento também apontava o avanço do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita e cujo discurso estava concentrado na imigração.

Partidários do partido anti-imigração Alternativa para a Alemanha (AfD) seguram bandeiras alemãs durante manifestação em Berlim em 2018. — Foto: REUTERS/Hannibal Hanschke

Partidários do partido anti-imigração Alternativa para a Alemanha (AfD) seguram bandeiras alemãs durante manifestação em Berlim em 2018. — Foto: REUTERS/Hannibal Hanschke

Ao final de 2016, o debate ficou ainda mais acirrado depois que um militante do grupo conhecido como Estado Islâmico dirigiu um caminhão contra um mercado de Natal em Berlim.

O ataque deixou 12 mortos. O motorista, o tunisiano Anis Amri, foi morto pela política italiana a tiros, dias depois, na cidade italiana de Milão, após ter sido procurado por toda a Europa.

A tensão na Alemanha em torno da questão migratória continuou. Em junho de 2019, o político Walter Lübke, do partido de Merkel, foi assassinado por um extremista de direita, que confessou o crime.

Pesquisas de opinião mostraram que, entre 2014 e 2018, a imigração era considerada pelos alemães o maior problema do país – liderando com quase 70% das respostas em 2016.

Merkel, porém, nunca se arrependeu de sua arriscada decisão política.

A preocupação com a imigração caiu, e em 2019 o tema perdeu para as mudanças climáticas o título de maior temor nacional – em 2020, ambos ficaram atrás da Covid-19.

Um estudo do alemão IAB (Instituto para o Mercado de Trabalho e Pesquisa Vocacional), do início de 2020, mostrou que 49% dos refugiados que chegaram à Alemanha a partir de 2013 haviam conseguido um emprego estável após até cinco anos desde sua entrada no país.

A integração de refugiados, de acordo com o estudo, era possível e estava ocorrendo.

Último mandato

Outdoor mostra as mãos da primeira-ministra Angela Merkel, em seu gesto tradicional, durante sua campanha para reeleição, em 2013 — Foto: Johannes Eisele/AFP

Outdoor mostra as mãos da primeira-ministra Angela Merkel, em seu gesto tradicional, durante sua campanha para reeleição, em 2013 — Foto: Johannes Eisele/AFP

Por várias vezes, analistas previram que Merkel poderia pagar um preço alto demais por sua aposta em favor dos imigrantes – inclusive ser retirada do poder.

Veio então o pleito de 2017, e Angela Merkel conseguiu assegurar mais uma vitória para sua democracia-cristã.

Foi, porém, um sucesso parcial. Apesar do quarto mandato, Merkel viu seu bloco formado por CDU e CSU obter seu pior resultado nas urnas em 70 anos.

Além disso, a extrema-direita, representada pelo AfD, conseguiu chegar ao Parlamento pela primeira vez, confirmando as previsões de muitos analistas sobre seu fortalecimento.

Na hora de formar o governo, pela terceira vez — a segunda seguida —, a chanceler teve de contar com os social-democratas para compor uma coalizão – confirmada apenas em março de 2018, após cinco meses de difíceis negociações.

Com gosto de despedida, o quarto e último mandato de Merkel acabou marcado pelo avanço de forças antes marginais na política alemã e o enfraquecimento dos blocos tradicionais.

O Partido Verde, à esquerda, e o AfD, à direita, ganhavam terreno em pleitos regionais, enquanto CDU e SPD sentiam a pressão causada pela perda de apoio.

Covid-19

Chanceler da Alemanha, Angela Merkel, usa máscara após encontro com lideranças regionais sobre o coronavírus nesta terça-feira (5) — Foto: Michel Kappeler/Pool via Reuters

Chanceler da Alemanha, Angela Merkel, usa máscara após encontro com lideranças regionais sobre o coronavírus nesta terça-feira (5) — Foto: Michel Kappeler/Pool via Reuters

A pandemia de Covid-19, a partir do início de 2020, trouxe um novo e gigantesco desafio.

Na batalha contra o coronavírus, a chanceler viveu momentos de grande sucesso e admiração, em que os números alemães mostravam-se muitos mais auspiciosos que os de outras nações desenvolvidas, e outros de ceticismo e críticas, quando a doença avançava e testava a resistência de técnicos e políticos.

Entretanto, o país experimentou lentidão no processo de vacinação da população e os números de internação hospitalar e de falecimentos chegaram a níveis comparáveis, e em alguns casos superiores, ao de países severamente atingidos inicialmente como Espanha, França e Itália.

Em abril de 2021, uma pesquisa da Deustchlandtrend mostrou que apenas 35% dos alemães apoiavam a atuação da chanceler, índice que era de quase 70% seis meses antes. Nada menos que 64% diziam-se insatisfeitos.

Angela Merkel, no entanto, continuava como uma referência segura de estabilidade para temas complexos, especialmente no campo internacional.

As negociações entre a União Europeia e o Reino Unido em torno do Brexit e as tumultuadas relações com o presidente americano, Donald Trump, marcaram os últimos anos de Merkel como chanceler.

Em agosto de 2021, ela fez uma visita de despedida ao presidente russo, Vladimir Putin, com quem sempre teve um trânsito facilitado devido ao passado de ambos – ela fluente em russo, e ele com domínio equivalente do alemão.

Merkel defendeu o dissidente russo Alexei Navalny e pediu sua libertação, solicitação rejeitada por Putin.

O respeito mútuo, no entanto, era visível no encontro, indicativo de quanto a influência de Merkel se estendeu ao longo de 16 anos no poder, tanto no Ocidente como no Oriente.

Imagem positiva

Mosaico com fotos da primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, em suas mensagens televisivas anuais de Ano Novo, ao longo de seu mandato, de dezembro de 2005 a dezembro de 2020 — Foto: Reuters/Staff/File Photos

Na Europa, continente que ela acabou informalmente liderando, Merkel deixou uma imagem positiva.

Estudo do Conselho Europeu em Relações Estrangeiras, publicado em setembro de 2021, mostra que os cidadãos de 12 nações da União Europeia – incluindo França, Holanda, Suécia, Espanha, Itália e a própria Alemanha – admiram e concordam com o caráter político conciliador e cuidadoso da chanceler.

Apresentada em oposição ao francês Emmanuel Macron, cujo estilo de liderança envolve propostas de mudanças rápidas e abrangentes, Merkel apareceu como favorita para um fictício cargo de “presidente europeia”.

Um total de 41% dos entrevistados pelo instituto votariam em Merkel, contra apenas 14% que escolheriam Macron.

Aparentemente confortável diante do seu histórico e seu legado, a primeira mulher a governar a Alemanha deixou transparecer, a poucas semanas de deixar o cargo, um lado pouco conhecido de sua atuação.

Em um evento em Düsseldorf, no início de setembro de 2021, Merkel apresentou-se, pela primeira vez, como feminista.

“Essencialmente, é sobre o fato de que homens e mulheres são iguais, no sentido de participação na sociedade e na vida em geral”, afirmou a chanceler. “E, nesse sentido, posso dizer: ‘Sim, eu sou uma feminista’.”

Com a fala, a líder alemã adicionou mais uma característica a tantas que, durante 16 anos, marcaram sua passagem pelo topo do poder na Alemanha e no mundo. Angela Merkel deixa o comando de seu país com lugar garantido na história, como uma das mais importantes líderes do século 21.

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G1

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