Diário de São Paulo
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Ney Matogrosso lembra beijo no quartel e diz que Brasil está mais ‘careta’ do que na ditadura

Foi no auge dos "anos de chumbo", o período mais repressivo da ditadura militar do Brasil, que ele surgiu na cena artística. Com voz marcante, fez de seu

Ney Matogrosso lembra beijo no quartel e diz que Brasil está mais ‘careta’ do que na ditadura
Ney Matogrosso lembra beijo no quartel e diz que Brasil está mais ‘careta’ do que na ditadura

Redação Publicado em 20/11/2018, às 00h00 - Atualizado às 14h49


Cantor fala da necessidade de transgressão e dá detalhes do ‘primeiro amor’ não relatados em livro de memórias recém-lançado. Ney comenta batismo de nova turnê ‘Bloco na rua’.

Foi no auge dos “anos de chumbo”, o período mais repressivo da ditadura militar do Brasil, que ele surgiu na cena artística. Com voz marcante, fez de seu corpo e sexualidade objetos de luta contra o que diz ser uma “bestialidade do conservadorismo” na época.

Passados 45 anos de carreira, Ney Matogrosso diz que o Brasil atual é mais “careta” que aquele. Afirma que regrediu muito nos últimos anos, mas revela otimismo com o futuro.

Ney, na noite de lançamento e sessão de autógrafos no Rio do livro “Vira-lata de raça – Memórias”. A obra, organizada pelo jornalista Ramon Nunes Mello, perpassa momentos da vida e carreira do artista de 77 anos.

Ney fala da conturbada relação com o pai, à qual atribui importância sobre o homem e a persona artística que construiu. Dá detalhes sobre o fim do Secos & Molhados, que o revelou ao Brasil, e sobre as relações amorosas com Cazuza e Marco de Maria, com quem viveu por 13 anos.

Mas ele vai além e revela que, aos 17 anos, deu um beijo dentro do quartel no seu “primeiro amor”, um jovem com quem dividia alojamento na Aeronáutica, onde serviu por 2 anos.

Embora não levante bandeira partidária, Ney Matogrosso é como um manifesto político. Ele diz que toda sua vida como artista se pauta na defesa da liberdade de expressão, dos direitos individuais e do bem coletivo. Ele começou a se destacar aos 31 anos, em 1973, cinco após o Ato Institucional Nº 5, o AI-5, nos anos mais repressivos do regime militar.

Ney Matogrosso aos 3 anos: foto está no livro de memórias do artista — Foto: Arquivo pessoal

Ney Matogrosso aos 3 anos: foto está no livro de memórias do artista — Foto: Arquivo pessoal

No livro, escrito em primeira pessoa, Ney compara o atual contexto com o da ditadura e avalia que hoje se vive um contexto pior não apenas no Brasil, mas no mundo:

“O planeta está nas mãos de pessoas da pior qualidade possível, inescrupulosas, sem caráter, loucas de verdade. Apesar de enxergar essa podridão, não permito que meu olhar se reduza às excrescências do que estou vendo. Sem dúvida essas pessoas que estão agora no poder irão parar na lata de lixo”.

Ele também fala de sua necessidade de enxergar o mundo com otimismo e comenta a turnê que fará em 2019, “Bloco na rua”.

 – Em seu livro, você diz que Brasil de agora parece pior que o da ditadura militar. Por quê?

Ney Matogrosso – A gente regrediu muito e isso a gente tem que admitir. A gente não pode querer tapar o sol com a peneira. Houve uma regressão muito grande, que não é de agora. Agora pode ser que dê um outro salto, mas a gente já deu um grande salto pra trás com a chegada de [Michel] Temer.

– Você diz que estamos em uma época de regressão, não de transgressão. Qual a atitude possível para voltarmos a transgredir?

Ney Matogrosso – A evolução não é contínua e reta para frente. Ela vai, ela vem, ela vai, ela vem… A transgressão é dentro da gente, não tem uma fórmula. É você não se submeter. Como é que eu vou me submeter a esse mundo que eu assisto? Como é que eu vou compactuar com esse mundo? Eu não estou falando do Brasil apenas, estou falando do mundo que a gente assiste. Eu não posso compactuar com isso. Me deixa fora. Claro que minimamente eu tenho que conviver em sociedade. Mas eu me preservo muito.

“Eu não tive esse estresse que as pessoas tiveram com política. Não quero ser âncora de medo, sabe? Então, eu não me estressei. Eu olhava praquilo e dizia assim: ‘é isso aí, vai ser o que tiver que ser, e não vou entrar nessa pilha’.”

Eu não entrei, mas fiquei preocupado com amigos que ficaram enlouquecidos esse tempo todo. Eu dizia ‘pelo amor de Deus não entra nessa, isso tudo é loucura, isso tudo também vai passar em algum momento, não fica assim’.

Ney Matogrosso (ao centro) com João Ricardo e Gerson Conrad no grupo Secos & Molhados — Foto: Divulgação/Editora Tordesilhas/Ary Brandi

Ney Matogrosso (ao centro) com João Ricardo e Gerson Conrad no grupo Secos & Molhados — Foto: Divulgação/Editora Tordesilhas/Ary Brandi

 – Em uma entrevista à Folha de S.Paulo no ano passado, quando questionado se temia que Jair Bolsonaro viesse a assumir a presidência do país, você afirmou que ele ‘nunca’ seria presidente do Brasil e que não acreditava que o país desse esse passo para trás. Agora que ele foi eleito…

Ney Matogrosso – Vamos “enterrar Inês” e vamos tocar a nossa vida. O quê que eu ia fazer, me suicidar? Cortar os meus pulsos porque o Bolsonaro ganhou? E te digo mais: fico lá no fundo esperando que ele faça alguma coisa boa pelo Brasil. Não foi o presidente eleito democraticamente? Então eu espero que ele, minimamente, faça alguma coisa boa pelo Brasil. Eu não sou uma pessoa negativa. Eu acho que sempre é possível tocar em frente.

 – Voltando ao livro, ao falar que o país está mais careta que na década de 70, você fala da internet…

Ney Matogrosso – Na internet, eu acesso todas as opiniões, aquela velha opinião formada sobre tudo. Então, todos têm [opinião] e ninguém respeita a opinião do outro. Se você não pensar igual, neguinho acha que pode te massacrar, mas isso é uma idiotice. Eu não frequento [redes sociais]. Não me interessa internet, não me interessa saber a opinião das pessoas, não me interessa ficar dando minha opinião sobre nada. Só dou opinião quando você está aqui conversando comigo, quer saber o que eu penso, eu te falo.

“Eu não entro no caldeirão da bruxa para dar opinião. Gosto muito de mim. A primeira vez que eu entrei, o que eu li sobre mim era ‘só falta o sarcófago’ e eu disse ‘tchau, não quero nem ver isso mais’. Que prazer louco e doentio de entrar numa coisa dessas para ser ofendido, para ver as pessoas ofendendo umas às outras? “.

Não me interessa. Prefiro ficar na minha casa ouvindo música, prefiro ficar com a minha gatinha na minha cama, prefiro ficar fazendo cafuné na minha macaquinha do que entrar nessa.

Ney Matogrosso canta com Nação Zumbi tocam no Rock in Rio 2017 — Foto: Fábio Tito / G1

Ney Matogrosso canta com Nação Zumbi tocam no Rock in Rio 2017 — Foto: Fábio Tito / G1

 – Qual o sentimento mais latente ao revirar esse seu baú de memórias para publicar o livro?

Ney Matogrosso – Olha, talvez uma impressão de uma utilidade pública, sabe? Eu conto a minha experiência, da minha vida, e acho que muita gente deve passar por coisas similares ao que eu passei e que talvez a minha experiência facilite a compreensão da vida dessas pessoas.

 – Você diz que não é saudosista…

Ney Matogrosso – Não tenho saudade de nada. Eu acho que está tudo no momento certo. Não tenho apego. Não sou uma pessoa apegada. Não tenho nem problemas de conversar com você sobre a minha morte no momento que vier. Aprendi, a duras penas, a não ter apego. Quando eu era criança, ia para um estado com meu pai. Ali eu fazia umas amizades. Aquelas amizades, um ano, um ano e meio depois, eram todas apagadas da minha vida e eu ia para um outro lugar. Aí chegou um momento, quando eu voltei para Mato Grosso, que eu disse ‘não, não quero amigo, não quero fazer amigo, porque eu vou perder eles daqui a pouco’. Então isso já me deu uma liberada. Porque é bom você ser solto assim.

 – No livro você também diz que tinha dificuldade em receber homenagens. Por que essa resistência?

Ney Matogrosso – Não só homenagens, eu tinha dificuldade em receber de uma maneira geral. Se você tivesse me conhecido há 20 anos e viesse me dar um abraço você ia perceber que eu travava. Mas era instintivo, eu não sabia que era assim. Meus amigos, nossa, enxiam o meu saco. Diziam ‘você parece um bugre, você parece um não sei o quê, não sabe receber carinho’. Eu não sabia, eu tinha dificuldade. Porque como eu não transitei por essa situação na minha casa, eu saí de lá sem conhecer isso. Então eu tinha muita dificuldade.

Eu achava, olha que idiotice – eu falo isso porque o Cazuza passou por isso e eu disse isso a ele – as pessoas ficam com uma impressão muito errada de mim, porque elas achavam que eu era arrogante. E eu não era. Eu era deficitário e não sabia lidar com isso. Eu falava para o Cazuza: ‘Cazuza as pessoas têm uma impressão do seu lado pior. O melhor de você, você não mostra, que era uma pessoa suave, uma pessoa amorosa, carinhosa. E ele não mostrava isso, só mostrava o louco, o punk, o bêbado. E eu, de uma outra maneira, também fui assim.

– Então hoje você se permite receber carinho?

Ney Matogrosso – Agora eu aceito afeto. Nossa, carinho é muito bom. Graças a Deus eu destravei disso. Eu gosto de fazer carinho nas pessoas, gosto de receber carinho. As pessoas nas ruas são muito carinhosas comigo. Elas me dizem só coisas boa. Anteontem, vou te contar uma coisa que me aconteceu, eu fui ver uma peça lá na Glória. Eu estava com três amigos e a gente resolveu voltar a pé para pegar o metrô. Passamos na frente de um bar e uma mulher gritou o meu nome. Eu parei, ela veio, me abraçou, me beijou, eu abracei.

Aí um homem, um negro enorme, gritou ‘Ney Matogrosso’, eu disse sim, e ele perguntou ‘me dá um abraço?’ e eu disse ‘dou’. Aí ele veio, eu dei um abraço nele e ele pirou. Ele gritou assim: ‘Ninguém faz isso, ninguém faz isso’. Não é uma loucura? Uma pessoa ter uma reação dessas a um abraço que você oferece? Ah, não, o mundo está precisando demais disso, de mais abraço.

 Eduardo Dussek, Rita Lee e Ney Matogrosso nos bastidores de show da Rita Lee no Canecão, em Julho de 1995 — Foto: Cristina Granato / Divulgação

Eduardo Dussek, Rita Lee e Ney Matogrosso nos bastidores de show da Rita Lee no Canecão, em Julho de 1995 — Foto: Cristina Granato / Divulgação

 – Foi com Cazuza que você aprendeu a dormir junto, né?

Ney Matogrosso – Não dormir junto, mas ter uma vida junto com alguém. Porque eu não oferecia nada além do meu corpo. Sentimento, não. Se quisesse me ver uma segunda vez eu caía fora. Trepar? Nossa, era a coisa mais fácil. Mas, relacionamento amoroso e morar junto, eu fugia como um cão. Com ele eu comecei a considerar. E depois dele eu tive um relacionamento de 13 anos. Foi o único também. Eu não gosto de casar. Não gosto de viver junto. Eu acho que o ideal é eu morar aqui e a criatura no apartamento da frente ou na mesma rua.

Mas, morar junto eu não gosto. Porque, sabe o que acontece? Eu me sinto na obrigação, quando estou convivendo com alguém, de estar aberto totalmente para aquela pessoa o tempo todo. Ninguém aguenta, né, estar disponível o tempo todo. Mas quando eu estou vivendo uma coisa dessas eu me sinto na obrigação de estar aberto para aquela pessoa. Aí eu estou lendo, a pessoa entra e fala qualquer coisa comigo, eu paro de ler. Aí continuo lendo. Se volta e fala mais alguma coisa, eu já fico achando estranho. Se volta a terceira e a quarta eu já paro de ler e já vou com ela para resolver as coisas.

 – Você diz no livro que viveu um apocalipse por causa da Aids, vendo amores e amigos morrer à sua volta. Hoje a doença já não é mais aquele fantasma. Você acha que a galerinha relaxou demais? Como vê isso?

Ney Matogrosso – Olha, eu não sou moralista. Como eu defendo a liberdade de expressão, eu acho que cada um faz da sua vida o que bem entender. Agora eles têm que saber que não mata mas que é uma doença. E que é uma doença com tratamento pesado. Daí eu acho que tem que ter consciência de fazer uma opção na sua vida. Entendo todo o desagrado com camisinha, todo desconforto com camisinha, mas tem-se que fazer uma opção.

 – Você deixa muito claro ser um livro aberto, mas estabelece o limite da sua intimidade, que não revela. Eu quero me atrever a dar um passinho em direção a ela e te perguntar sobre a paixão platônica que você cita no livro para com um colega de quartel, com quem ‘rolava um clima’. Você falou com ele sobre essa paixão?

Ney Matogrosso – Nós conversávamos sobre ela. Porque nós éramos dois adolescentes medrosos em 1959. Mas era conversado. A gente encostava a cama na hora de dormir, mas a gente não se encostava. No máximo a gente dava a mão na hora de dormir. Mas isso era falado, conversado. Uma vez a gente se beijou.

Mas olha que situação engraçada: os coleguinhas ficaram assim para nós dois, naquela coisa de testosterona dos 17 anos: ‘Duvido que vocês dois se beijem’. Aí ele olhou pra mim e perguntou: ‘E aí, vamos beijar?’ E eu disse: ‘Vamos’. E demos um beijo na boca na frente de todos, foi aquela gritaria e todo mundo saiu correndo. E foi um amor mesmo, foi o primeiro amor da minha vida. Isso eu não contei na biografia né? [risos]

 – E sobre a biografia que está sendo escrita pelo Júlio Maria [mesmo biógrafo de Elis Regina], ela já tem data para sair? Você tem acompanhado o processo?

Ney – Ano que vem [está prevista a publicação]. Não acompanhado porque ele [Júlio Maria] não quer que eu acompanhe. Eu acho que é uma bobagem, porque eu não quero vetar nada. Só quero que não tenha informação errada. É o que eu falo pra ele: ‘Olha, você deveria até querer que eu lesse, porque eu não quero censurar, eu quero que não tenha nada errado, porque se tiver uma coisa muito errada, eu vou processar’.

– E sobre a nova turnê, que estreia no Rio em Janeiro? Já tem nome? Pode adiantar detalhes sobre o repertório?

Ney Matogrosso – “Bloco na rua” [o nome da turnê]. O repertório é MPB levada com guitarra, baixo elétrico, percussão. Vai ser com a mesma banda da turnê de Atento aos Sinais [turnê que ele acaba de encerrar, após cinco anos percorrendo o mundo, a mais longa de toda a sua carreira].

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