“Falta o quê? Eu tenho saúde, minha família tem saúde. Eu tenho o que comer. Eu tenho tudo. Essas coisas de que vocês correm atrás, a gente não precisa.”

É assim, com aparentemente muito pouco, que vivem as quase 600 pessoas no vilarejo de Lukwambe, na Tanzânia. O local é diferente de praticamente tudo que você já deve ter visto. Não há sinal de televisão e muito pouco acesso à tecnologia. Quem vive lá sequer sabe o que é chocolate.

Não tem saneamento básico. Não tem energia elétrica. Não tem dinheiro. Os moradores locais estranham o uso de máscara – essa tão tradicional nas nossas vidas há um ano. Mas agora, há algumas semanas, Lukwambe tem mais alguns motivos para sorrir. Graças ao Santos e ao santista Clayton Silva.

Crianças africanas brincam com camisa do Santos — Foto: Arquivo pessoal

Crianças africanas brincam com camisa do Santos — Foto: Arquivo pessoal

O torcedor do Peixe conheceu o vilarejo de Lukwambe em 2019, por meio de um programa de trabalho voluntário na África. À época, levou camisas com o símbolo do clube desenhado à mão para presentear as crianças. O presente, porém, teve um significado ainda maior: virou uniforme escolar.

– Eles não tinham uniforme reserva. Quando lavavam, ficavam sem uniforme – lembra Clayton.

O santista voltou ao Brasil com a missão de visitar novamente o vilarejo o quanto antes. A pandemia do novo coronavírus atrapalhou os planos, mas Clayton conseguiu reencontrar Lukwambe em 2021. É aí que a nossa história começa.

Crianças cercam Clayton em vilarejo africano — Foto: Arquivo pessoal

Crianças cercam Clayton em vilarejo africano — Foto: Arquivo pessoal

A frase que abre esta reportagem foi dita por um morador de Lukwambe a Clayton há algumas semanas, ao ser questionado sobre a falta de condições básicas de sobrevivência no vilarejo. Mesmo diante da felicidade aparente, o santista, que vive em Florianópolis, concluiu que as crianças e os adultos precisavam de mais. Mais diversão, mais estrutura, mais tudo.

Com a ajuda do Santos, que doou uniformes, bolas e uma camisa autografada para ser leiloada em uma vaquinha virtual, Clayton voltou a Lukwambe para ajudar os habitantes a construírem dois campos de futebol e duas salas de aula, arrumar uma ponte no caminho até a escola do vilarejo e contribuir com um projeto que levará água potável ao local.

– Eu prometi que faria dois campos de futebol. Falei que ia fazer um para a escolinha e um oficial para o vilarejo, para que todo mundo tivesse uma opção de lazer no fim de semana. Eles me disseram que queriam aprender futebol. Eles amam futebol. E tem muita criança boa de bola lá, mas eles não têm nada. Levei bola, levei coisas para aprenderem. Coisas básicas do futebol – conta Clayton.

– Eles tinham cinco turmas em diferentes estágios e somente três salas de aulas. Então sempre ficavam dois professores e duas turmas ociosos. Eles tinham que revezar, ficavam pouco tempo na sala. Agora, como eu construí duas salas, todos os professores têm onde dar as aulas.

Sala de aula construída com ajuda de Clayton — Foto: Arquivo pessoal

Sala de aula construída com ajuda de Clayton — Foto: Arquivo pessoal

Campo de futebol construído com ajuda de santista na África — Foto: Arquivo pessoal

Campo de futebol construído com ajuda de santista na África — Foto: Arquivo pessoal

De volta a Lukwambe, Clayton encontrou novos santistas. O uniforme que havia deixado em 2019 continua sendo utilizado às quartas e sexta-feiras para as crianças irem à escola. O Santos virou o time oficial do vilarejo.

– Até hoje, está todo mundo com o uniforme lá. Eu trouxe mais algumas (camisas) também. É legal para caramba. É engraçado que todos falam Santos, Santos, Santos, mas eles nunca viram televisão.

Garotos de vilarejo africano com bandeira e uniformes do Santos — Foto: Arquivo pessoal

Garotos de vilarejo africano com bandeira e uniformes do Santos — Foto: Arquivo pessoal

Em Lukwambe, Clayton viveu como um local, sem água potável, sem vaso sanitário, sem energia elétrica e se alimentando do que todos se alimentam por lá: o tradicional arroz e feijão.

– Eles tomam banho de caneca. O banheiro é um buraco. Eu comia o mesmo que eles, arroz e feijão todo dia. Nunca mudava a alimentação. Não tem acesso a nada gelado. Geralmente, eles plantam a própria comida. Os que não fazem isso usam bastante moto-táxi. É um dos poucos trabalhos que se tem lá. Ele leva para as pessoas o que elas pedem. Muito é no escambo. Os que trabalham vendem carvão. Eles vão para um lugar, cortam árvore, vendem carvão. O trabalho desses 15 dias gera em torno de 20, 30 dólares – explica.

Crianças de vilarejo africano mostram prato típico do local — Foto: Arquivo pessoal

Crianças de vilarejo africano mostram prato típico do local — Foto: Arquivo pessoal

Mães carregam filhos no colo e pouco se misturam com homens de vilarejo africano — Foto: Aquivo pessoal

Mães carregam filhos no colo e pouco se misturam com homens de vilarejo africano — Foto: Aquivo pessoal

Apesar de ter conseguido cumprir a promessa de levar diversão às crianças com os campos de futebol, Clayton sabia que o vilarejo precisava de mais, incluindo comida para os alunos e um caminho minimamente estruturado do vilarejo à escola.

Ponte para crianças irem para a escola em vilarejo na Tanzânia  — Foto: Arquivo pessoal

Ponte para crianças irem para a escola em vilarejo na Tanzânia — Foto: Arquivo pessoal

Algumas crianças caminham cerca de 10km de casa até a escola. A maioria precisa atravessar um rio. A solução encontrada pelos adultos foi derrubar um tronco de árvore e transformá-lo em ponte. Mas Clayton comprovou: não era o suficiente.

– Eu não consegui chegar à metade. Travei. Colocamos como se fosse corrimão dos dois lados. Agora pode atravessar apoiando. Ficou tranquilo. Era um absurdo a outra ponte. E já tinha morrido uma criança lá no ano passado – conta.

Esse, porém, estava longe de ser o único problema dos alunos. Eles ficavam na escola das 7h às 14h sem comer. Agora, têm refeição diária.

– Com 100 dólares, eles comem por um mês. A escola inteira come. Eu me responsabilizei pela alimentação deles para sempre. Os próprios alunos fazem a comida.

Agora, crianças têm refeições diárias em escola de vilarejo africano — Foto: Arquivo pessoal

Agora, crianças têm refeições diárias em escola de vilarejo africano — Foto: Arquivo pessoal

As regras de sobrevivência no vilarejo são muito simples. Os mais velhos cozinham e cuidam dos mais novos. Na escola, não tem quem cozinhe ou cuide da merenda. Os próprios alunos são os responsáveis pela alimentação.

Nas casas, a pobreza fica ainda mais evidente, segundo Clayton.

– Você olha e vê uma miséria absoluta. As casas são feitas de barro e estrume. As paredes são dessa forma. É um calor absurdo dentro dessas casas.

– Eles vivem de um jeito que eu sequer imaginava que existisse. Você muda a forma de ver a vida. Eles são felizes. Eles são bons. Você volta a acreditar na humanidade – diz Clayton.

Torcedor do Santos ganha presente de crianças em vilarejo africano — Foto: Arquivo pessoal

Torcedor do Santos ganha presente de crianças em vilarejo africano — Foto: Arquivo pessoal

Promessa é dívida

Antes de voltar a Lukwambe, Clayton fez uma promessa. Se conseguisse entregar os campos de futebol e as salas de aula, subiria ao topo do monte Kilimanjaro, o Pico Uhuru, local mais alto da África, com 5.895m de altitude. Ele encarou a aventura depois de se despedir do vilarejo.

Caminho até o topo do lugar mais alto da África — Foto: Arquivo pessoal

Caminho até o topo do lugar mais alto da África — Foto: Arquivo pessoal

Durante quase uma semana, Clayton encarou uma variação de temperatura de 30ºC positivos a 30ºC negativos, ventos fortes que o deixaram cego de um olho por alguns dias…

– Era o tempo todo o vento me tirando o equilíbrio. Eu estava com três calças, quatro pares de meia. Só que nossas paradas não podiam passar de dois minutos, porque a gente congelava. A gente dormia na barraca, com um cobertor liso. Eu dormia com roupa. Dormi com três calças no último dia – lembra.

– Fiquei cego por causa do vento. Meu olho direito só via vulto. No lado direito, eu não via nada. O vento era tão absurdo de forte que se tirasse a luva você não conseguia movimentar os dedos. Ele não dobrava, de tão frio que era.

Torcedor do Santos leva bandeira ao lugar mais alto da África — Foto: Arquivo pessoal

Torcedor do Santos leva bandeira ao lugar mais alto da África — Foto: Arquivo pessoal

Na bagagem, o santista levou ao topo da África uma bandeira do Santos e uma cartinha entregue pelos alunos de Lukwambe como lembrança.

A meta de Clayton, agora, é construir uma biblioteca para os alunos de Lukwambe. O santista está realizando mais uma vaquinha virtual para levar aos alunos mais cultura.

.

.

.

Fonte: GE – Globo Esporte.