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Projeto leva muay thai a pessoas LGBTQIA+ em vulnerabilidade social: “Te dá um pouco de vida”

Em uma tarde ensolarada de quarta-feira, um grupo de cerca de 10 pessoas se reúne diante da vista cinematográfica do Pão de Açúcar e da Praia do Flamengo, na

Projeto leva muay thai a pessoas LGBTQIA+ em vulnerabilidade social: “Te dá um pouco de vida”
Projeto leva muay thai a pessoas LGBTQIA+ em vulnerabilidade social: “Te dá um pouco de vida”

Redação Publicado em 20/10/2021, às 00h00 - Atualizado às 10h31


Muay Thai Nem é uma iniciativa da professora Luiza Pokrovsky em parceria com a Casa Nem para oferecer defesa pessoal e bem-estar gratuitamente; “É de onde resgato minhas forças”, diz aluna

Em uma tarde ensolarada de quarta-feira, um grupo de cerca de 10 pessoas se reúne diante da vista cinematográfica do Pão de Açúcar e da Praia do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. A batida da rapper norte-americana Doja Cat se mistura ao som de golpes que atingem aparadores de chute e manoplas. Depois do hiato de uma semana, por conta da chuva, é dia de aula do projeto social Muay Thai Nem.

A iniciativa foi idealizada pela professora Luiza Pokrovsky. Responsável pela Escola de Muay Thai Pedra da Lotta, ela procurou a Casa Nem, ONG de acolhimento a pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social, para oferecer ao público aulas gratuitas e ao ar livre.

Professora Luiza Pokrovsky, ao centro, com a galera do projeto Muay Thai Nem — Foto: Divulgação/Alvaro Farias

Professora Luiza Pokrovsky, ao centro, com a galera do projeto Muay Thai Nem — Foto: Divulgação/Alvaro Farias

Esse é o primeiro projeto social comandado pela professora Luiza. Ela conta que a escola carrega o nome de Lotta de Macedo Soares, arquiteta, paisagista e urbanista autodidata responsável pela criação do Aterro do Flamengo, local onde as aulas acontecem. Lésbica, Lotta viveu um relacionamento com a poetisa norte-americana Elizabeth Bishop e teve sua vida retratada no longa “Flores Raras”, de 2013 (assista ao trailer abaixo).

– Lotta pertencia à comunidade LGBTQIA+. Achei interessante trazer para a escolinha um projeto que acolhesse esse público. Além de aprenderem uma defesa pessoal, eles também têm um momento de relaxamento – explica Luiza.

E as aulas vêm fazendo sucesso. Vinda do Maranhão, Maria Matheusa foi direto para a Casa Nem quando chegou ao Rio, há um ano e meio. Ela deixou o local ao conseguir um emprego, mas acabou voltando ao ser demitida, por conta da crise na pandemia. Agora, usa a prática de muay thai para espairecer.

– Me sinto bem, volto para casa mais leve. Moramos em um espaço coletivo, então vir para um local para não somente treinar, mas também para se divertir, te dá um pouco mais de vida.

Maria Matheusa em dia de Muay Thai Nem — Foto: Arquivo pessoal/Luiza Pokrovsky

Maria Matheusa em dia de Muay Thai Nem — Foto: Arquivo pessoal/Luiza Pokrovsky

Além da diversão, o aluno Diego Fernandes destaca a autodefesa como uma vantagem para o grupo. “Se alguém mexer comigo, vou saber me defender”, declara. Morador da Casa Nem e também funcionário da comunicação da ONG, o gaúcho Douglas Rasquinha faz coro a Diego.

– Muitas vezes a gente pensa pelo lado do esporte, mas como o perigo tá no dia a dia, aprender a se defender é muito importante – assegura.

Douglas (defendendo o soco) vê o muay thai como uma possibilidade de autodefesa — Foto: Jamille Bullé

Douglas (defendendo o soco) vê o muay thai como uma possibilidade de autodefesa — Foto: Jamille Bullé

A preocupação com a própria integridade física não é infundada. De acordo com o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de agressões a pessoas LGBTQIA+ aumentou 20,9% de 2019 para 2020 – foram 1169 casos –, enquanto a de homicídios subiu 24,7%, com 121 pessoas assassinadas no ano passado. Os índices, no entanto, podem ser muito maiores. Dez estados não enviaram dados sobre mortes, 12 não entregaram indicadores de agressão e sete deles não apresentaram qualquer número sobre violência contra a comunidade.

A efeito de comparação, o relatório do Acontece Arte e Política LGBTI+ e Grupo Gay da Bahia (GGB), com dados coletados através de casos veiculados na mídia, apresentou o número de 237 mortes violentas em 2020 – quase o dobro do que foi divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“O poder público atual não tem nenhum interesse em fazer esse tipo de levantamento”, diz Sayonara Nogueira, professora e presidenta do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE). Ela salienta a necessidade de políticas públicas específicas para pessoas LGBTQIA+, justamente por elas não serem tratadas com igualdade pela sociedade.

– O discurso de que somos todos iguais às vezes soa infantil, porque as oportunidades não são as mesmas para todos. Um corpo trans, negro e periférico vai encontrar inúmeras barreiras em comparação a um cis, branco e heteronormativo – assegura a professora.

Luiza Pokrovsky e a turma do Muay Thai Nem; luvas foram doadas para o projeto acontecer — Foto: Divulgação/Alvaro Farias

Luiza Pokrovsky e a turma do Muay Thai Nem; luvas foram doadas para o projeto acontecer — Foto: Divulgação/Alvaro Farias

Sayonara afirma que as esferas executiva e legislativa precisam desenvolver ações não apenas para frear a subnotificação de casos de violência contra pessoas LGBTQIA+, mas também para impedir que a comunidade siga como alvo de intolerância, agressões e mortes. Paralelamente, ela incentiva a prática de luta por pessoas da comunidade.

– É de suma importância que todes LGBTI+ participem de aulas de artes marciais para poderem se defender. Eu sinto mais receio de sair na rua hoje do que nos anos 90, quando supostamente o preconceito seria maior – garante Sayonara.

Mas nem tudo é defesa pessoal ou diversão. Uma das alunas chamava a atenção tanto pela potência quanto pelos movimentos mais harmoniosos ao aplicar os golpes. Aos 20 anos, Maria Dandara Félix já passou por muay thai, capoeira, judô e caratê. “Sou apaixonada pelas artes marciais”, diz. Nascida em Fortaleza, ela chegou ao Rio para reconstruir sua história.

Dandara em ação no projeto Muay Thai Nem — Foto: Jamille Bullé

Dandara em ação no projeto Muay Thai Nem — Foto: Jamille Bullé

Dandara saiu de São Paulo há cerca de um mês, onde estava em situação de rua, fazendo uso de drogas e sob abuso sexual e psicológico.

– Estava totalmente afastada do que me deixa forte. Agora estou conseguindo estudar, fazer curso de inglês e retomar (a vida), principalmente com o muay thai, que é de onde resgato minhas forças – afirma.

Com ajuda da Casa Nem, Dandara vem reconstruindo a vida no Rio de Janeiro — Foto: Arquivo pessoal/Luiza Pokrovsky

Com ajuda da Casa Nem, Dandara vem reconstruindo a vida no Rio de Janeiro — Foto: Arquivo pessoal/Luiza Pokrovsky

“Eu me espanto com o quanto a dedicação consigo mesma faz você florescer e recuperar o seu brilho de volta”, declara Dandara.

O poder de inspiração através da luta foi intenso. Aquela era apenas a segunda aula da cearense no projeto – as chuvas vinham adiando o reencontro com as luvas. Com a mente centrada, agora Dandara só quer saber de alcançar seus objetivos. Como se o tempo no Rio fosse uma metáfora de sua vida, a jovem sabe que, parafraseando Nelson Cavaquinho, “o sol há de brilhar mais uma vez”. E a boa notícia é que as terras cariocas são quase sempre ensolaradas.

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Globo Esporte

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