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Caos na Nicarágua chega ao esporte: medo, violência, censura e perseguição

Em 24 de julho, quando soube que a estudante de medicina Raynéia Gabrielle Lima havia sido assassinada com seis tiros, o treinador brasileiro Flávio da Silva

Caos na Nicarágua chega ao esporte: medo, violência, censura e perseguição
Caos na Nicarágua chega ao esporte: medo, violência, censura e perseguição

Redação Publicado em 14/08/2018, às 00h00 - Atualizado às 16h07


Esporte também é atingido: treinador brasileiro vai embora, jogador evita falar do governo, dirigente é acusado de violar direitos humanos, estádio recebe conflitos, boxeador cai em desgraça

Em 24 de julho, quando soube que a estudante de medicina Raynéia Gabrielle Lima havia sido assassinada com seis tiros, o treinador brasileiro Flávio da Silva concluiu: era mesmo a hora de abandonar a Nicarágua.

Ele vinha alimentando a ideia há semanas. Dias antes da tragédia, ao comandar um treino do Walter Ferretti, um dos principais clubes de futebol do país, Flávio percebeu que o pai de um jogador, nas arquibancadas, mostrava um vídeo para o médico do time. Curioso, foi conferir o que era. Na tela, viu um homem atear fogo em outro e sair de cena rindo.

Ali estava, para Flávio, a síntese do que vivia o país, mergulhado em crise desde 18 de abril, quando a população passou a protestar contra uma reforma previdenciária que aumentava a contribuição de trabalhadores e empresários. No dia seguinte ao começo das manifestações, já havia três mortos, os primeiros de centenas – consequência de conflitos entre manifestantes e forças de repressão do governo de Daniel Ortega.

– Tive que sair de lá. Eu dirigia o time que era da polícia, e era a polícia que fazia a repressão contra os estudantes. Eu sentia muito medo de sair na rua. Eu não sabia até quando as pessoas fariam essa diferenciação: que era um time relacionado com a polícia, mas que eu era apenas um estrangeiro fazendo meu trabalho. Isso me levou a sair – contou o treinador, por telefone, ao GloboEsporte.com.

Flávio da Silva (à direita) era técnico do Walter Ferretti, mas decidiu deixar a Nicarágua (Foto: Divulgação)

Flávio da Silva (à direita) era técnico do Walter Ferretti, mas decidiu deixar a Nicarágua (Foto: Divulgação)

No começo do ano, a decisão era impensável. Flávio da Silva levava a vida em um país pacato, com o qual estreitava laços desde sua primeira experiência por lá, há dez anos. No Walter Ferretti (o clube leva o nome de um líder da Revolução Sandinista que depois se tornou chefe da Polícia Nacional), era bicampeão nacional e responsável por classificar o time três vezes para a Concachampions – espécie de Libertadores para os países da América Central, da América do Norte e do Caribe. De repente, tudo ruiu.

– Foi muito difícil tomar essa decisão. Sou casado com uma nicaraguense, tenho uma filha com dupla nacionalidade. A Nicarágua é um país pequeno. A gente via as coisas muito de perto. Isso causava temor. (…) A morte da estudante brasileira foi muito importante na minha decisão de não ficar no país. Ali eu vi que ser um estrangeiro poderia não fazer diferença.

Flávio virou mais um exemplo dos efeitos colaterais, no esporte, de um país em colapso. Houve muitos outros: competições e jogos transferidos (caso do Mundial Sub-23 de Beisebol, que passou para a Colômbia), estádios transformados em campo de batalha, dirigentes afastados, jornalistas esportivos censurados, atletas em desgraça por apoiar o governo. Com a ruína da Nicarágua, ruiu também o esporte local.

E o Walter Ferretti, já sem Flávio da Silva, sentiu isso na pele. Por determinação da Concacaf, o clube teve que levar para a Costa Rica o mando de seu jogo contra o Club Franciscain, da Martinica. Nos pênaltis, em um estádio vazio, conseguiu classificação para as quartas de final da Concachampions. Outro clube da Nicarágua, o Motagua, viveu situação parecida – teve que atuar como mandante em Honduras contra o Belmopan Bandits, de Belize.

No Ferretti, jogam dois brasileiros, o zagueiro Rafael Almeida e o meia Bruno Morais. Rafael, 28 anos, que fez boa parte da carreira no futebol paulista, está na Nicarágua há um ano e meio. E se espanta com o que vem acontecendo no país – a ponto de mudar sua rotina.

– Em 24 horas, tudo ficou de pernas para o ar. Eu estava aqui quando começou. O país era o mais seguro da América Central. A gente podia andar pelas ruas tranquilamente. Agora você tem que escolher os lugares aonde vai, as pessoas com quem fala e os assuntos que fala. Há uma represália para quem fala do governo. A gente procura não sair muito à noite. Tem um grupo de Whatsapp de brasileiros aqui, e quando morreu a brasileira, bateu uma revolta, uma impotência muito grande. É um fato que não está muito bem explicado. Nada se explica direito por aqui – relata o zagueiro, por telefone, ao GloboEsporte.com.

Foi por falta de explicações que uma funcionária do Walter Ferretti, Wendy del Rosario Flores Gaméz, resolveu deixar o país. Capitã da Polícia Nacional, ela era chefe de operações do clube, mas vinha criticando a atuação do governo nas manifestações e disse que passou a ser observada por homens armados na carroceria de caminhonetes. Ela lembrou do que viveu uma colega de corporação, uma tenente expulsa por apoiar os protestos – e que, dias depois, perdeu o filho, vítima de um acidente de trânsito.

– Mas não foi um acidente – disse Wendy ao jornal “Hoy”.

Presidente de clube renuncia, acusado de violar direitos humanos

A 150 quilômetro de Manágua, fica Estelí, terceira maior cidade da Nicarágua e sede do Real Estelí, clube que se tornou um multiplicador de títulos nos últimos anos – venceu 11 dos 12 campeonatos nacionais mais recentes. Tamanho sucesso passa por um homem: Fidel Moreno, braço direito do presidente Daniel Ortega e uma das figuras mais poderosas do país.

Nascido na cidade em 1974, cinco anos antes de a Revolução Sandinista derrubar do poder o ditador Anastasio Somoza, Fidel Moreno fez parte dos quadros da FSLN (Frente Sandinista de Liberación Nacional) desde a infância. Com o tempo, foi crescendo na política e ganhando poder. Hoje, é o secretário geral da prefeitura de Manágua. E foi, por 14 anos, também o presidente do Real Estelí. Renunciou na semana passada.

Fidel Moreno renuncia à presidência do Real Estelí após acusações de violar direitos humanos (Foto: Divulgação)

Fidel Moreno renuncia à presidência do Real Estelí após acusações de violar direitos humanos (Foto: Divulgação)

Um mês antes de deixar o comando do clube, Moreno foi acusado, pelos Estados Unidos, de ser o comandante de atos de violação de direitos humanos na Nicarágua. O governo americano aplicou nele a Lei Magnitski, uma medida de sanção econômica para cidadãos de outros países que tenham cometido abusos a direitos humanos ou atos de corrupção. Em comunicado, o Departamento de Estado Americano disse:

“Fidel Antonio Moreno Briones dirigiu atos de violência cometidos pela Juventude Sandinista e grupos armados pró-governo que estiveram envolvidos em numerosos abusos aos direitos humanos relacionados aos presentes protestos contra o governo nicaraguense”.

Com a sanção, Fidel Moreno teria dificuldades em movimentar financeiramente o clube. Daí a decisão de renunciar.

Um dia após o anúncio da saída, o Real Estelí também tornou pública uma carta, assinada por jogadores e comissão técnica, louvando o dirigente. O texto diz que “seu nome e seu legado ficarão presentes na história do futebol nicaraguense”. Também destaca o que chama de “qualidade humana, moral e ética” do cartola.

Carta assinada por jogadores e comissão técnica do Real Estelí (Foto: Divulgação)

Carta assinada por jogadores e comissão técnica do Real Estelí (Foto: Divulgação)

Logo depois da carta, o clube divulgou um vídeo em que os jogadores fazem um agradecimento público a Fidel Moreno. No fim, dizem todos, em uníssono, “obrigado, Fidel”.

O Real Estelí tem dois brasileiros, os atacantes Maycon Santana, ex-promessa do Flamengo, e Vinícius Souza.

Estádio é palco de conflitos, ídolo se revolta, e jornalistas são censurados

O estádio Dennis Martinez leva o nome de um dos maiores ídolos do esporte na Nicarágua – o primeiro atleta do país a disputar a Major League Baseball. É também onde joga o Walter Ferretti. E onde franco-atiradores teriam se posicionado para disparar contra manifestantes.

As acusações ganharam as redes sociais, a imprensa da Nicarágua e chegaram a um relatório elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Organização dos Estados Americanos. O documento, de junho, tem quase 100 páginas e traz relatos de que membros da Juventude Sandinista usaram o local para atacar estudantes de uma universidade que fica em frente ao prédio.

Cabine do estádio Dennis Martinez revirada após dia de conflitos entre manifestantes e policiais (Foto: Arquivo pessoal)

Cabine do estádio Dennis Martinez revirada após dia de conflitos entre manifestantes e policiais (Foto: Arquivo pessoal)

Em 30 de maio, dia das mães na Nicarágua, um protesto contra o governo foi repelido por grupos armados e agentes policiais. Ao menos 16 pessoas morreram. Ao fim do dia, a Anistia Internacional comunicou:

“A Delegação da Anistia Internacional acompanhava a marcha do dia das mães e constatou o caos provocado pela detonação de armas de fogo. A organização pôde verificar que os ataques foram contrários aos manifestantes por policiais e grupos para policiais, conhecidos como ‘turbas sandinistas’, nas imediações da Universidade Nacional de Engenharia e da Universidade Centroamericana. Da mesma forma, foi reportado o possível uso de franco-atiradores que disparavam desde o estádio Dennis Martínez”.

Dois dias depois, o próprio Dennis Martínez se manifestou.

– Me dói saber que o estádio que leva meu nome está sendo usado para fins de violência, afetando meus irmãos nicaraguenses.

Fotos enviadas à reportagem pelo jornalista Miguel Mendoza mostram vidros quebrados e salas reviradas no estádio. Narrador de beisebol, ele foi proibido, pela administração, de frequentar o local depois de denunciar a presença de franco-atiradores lá. Um comunicado enviado à rádio do jornalista diz que ele “se dedicou a lançar falsas e infundadas acusações” contra o estádio, palco, segundo o texto, “de uma campanha de horror e falsidade”.

– A partir da crise de 19 de abril, comecei a fazer denúncias, a transmitir as marchas e a dizer que estamos vivendo uma repressão e um genocídio. Sempre me viram como opositor. (…) Passei a receber ameaças de pessoas ligadas ao governo, de que me iriam golpear, me retirar. É um governo genocida. E então a administração do estádio tomou a decisão de me declarar persona non grata – disse Mendoza, por telefone, ao GloboEsporte.com.

Carta declara jornalista Miguel Mendoza persona non grata em estádio (Foto: Arquivo pessoal)

Carta declara jornalista Miguel Mendoza persona non grata em estádio (Foto: Arquivo pessoal)

Não foi o único caso. Pelo mesmo motivo, outro jornalista, Yader Valle, foi proibido de trabalhar no estádio. Segundo Mendoza, não há muito o que fazer, já que a associação nacional de cronistas esportivos é ligada ao governo.

– O que me resta é esperar que esse país volte ao caminho normal de democracia. O que brigamos é para que termine este governo, que se antecipem as eleições e que a população decida pela saída de Ortega.

O caso de “Chocolatito”: apoio, rechaço e fake news

Román “Chocolatito” González está entre os esportistas de maior sucesso da Nicarágua. Ganhou títulos mundiais de boxe em quatro modalidades diferentes. E volta aos ringues no mês que vem para enfrentar o mexicano Moisés Fuentes. Em situações normais, seria um momento de apoio ao atleta nicaraguense. Mas vem acontecendo o contrário.

Tudo porque Chocolatito é um parceiro do governo. No passado, já participou de marchas de apoio a Ortega. E agora se vê envolvido em uma onda de antipatia – a ponto de seu adversário receber mensagens de apoio de nicaraguenses, que prometem torcer por ele contra o conterrâneo.

– Muita gente na Nicarágua me manifesta seu apoio. Sei que Román González errou, mas ao menos este mexicano está com o povo da Nicarágua – disse Fuentes ao “El Nuevo Diario”.

"Chocolatito" González, ídolo do boxe, é criticado por relação com o governo (Foto: Getty Images)

“Chocolatito” González, ídolo do boxe, é criticado por relação com o governo (Foto: Getty Images)

A ligação de “Chocolatito” com o governo fez explodirem notícias falsas a respeito do atleta. Em montagens, ele aparece vestido com uniforme de polícia e até atirando com uma arma. O boxeador teve que usar redes sociais para alertar que eram fake news – e, mesmo assim, recebeu críticas nos comentários.

Em rede social, boxeador se defende de notícias falsas e é contestado por internautas (Foto: Reprodução)

Em rede social, boxeador se defende de notícias falsas e é contestado por internautas (Foto: Reprodução)

A situação hoje

O fim de semana foi de novas marchas na Nicarágua – contra e a favor do governo. Os opositores pedem liberdade aos presos nos protestos, punições pelas mortes e a antecipação das eleições. O presidente Daniel Ortega disse, repetidas vezes, que não mudará o calendário eleitoral.

Os conflitos já deixaram 317 mortos no país, de acordo com a última atualização da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Outros órgãos indicam 448 vítimas. O governo da Nicarágua reconhece 197 – e diz que a maioria é de policiais.

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