Khalida apagou as luzes de casa e sentou-se no chão com as costas apoiadas na parede fria. Tremia com o celular nas mãos, ouvindo tiros e gritos, enquanto
Redação Publicado em 17/12/2021, às 00h00 - Atualizado às 08h31
Khalida apagou as luzes de casa e sentou-se no chão com as costas apoiadas na parede fria. Tremia com o celular nas mãos, ouvindo tiros e gritos, enquanto conversava com uma menina de 16 anos pelo telefone. A garota estava afundada até os joelhos em uma trincheira de esgoto, no aeroporto Hamid Karzai, em Cabul, tentando salvar a própria vida.
Naquele momento, a ex-capitã da seleção afegã escutava os relatos da jovem atacante (que tem o nome preservado), e as imagens passavam como retratos da infância.
Khalida Popal nasceu durante a guerra civil, no Afeganistão, e tornou-se uma revolucionária no futebol. Fundou a seleção feminina, em 2007, e precisou fugir do país, quatro anos depois, ao sofrer ameaças do Talibã. Agora, vivendo como refugiada na Dinamarca, ela voltou a desafiar o sistema com um só objetivo: resgatar meninas e mulheres atletas do próprio país.
Khalida não dormiu, não comeu e terminou desmaiando ao fim da primeira operação de resgate. Foi encontrada em casa pelo namorado e precisou ser atendida às pressas, na emergência, após duas semanas de trabalho intenso para retirar a seleção feminina principal do Afeganistão.
O episódio aconteceu em agosto, mas a ex-capitã ainda transparece o tom de voz cansado quando conversamos ao telefone. Um esgotamento psicológico, de quem atua cercada por escolhas que podem levar à morte dezenas de pessoas.
Khalida aconselhou meninas e mulheres a abandonarem as próprias casas, queimarem camisas da seleção e esconderem evidências de que haviam jogado futebol. Até mesmo os troféus, que contam uma história revolucionária no país, ficaram enterrados na areia molhada.
Na década de 1990, o Talibã baniu mulheres de praticarem esportes e participarem de eventos esportivos no Afeganistão. Agora em 2021, no entanto, elas não sabem que mudanças acontecerão com a volta do grupo ao Governo. É o que explica a professora de antropologia da Universidade de São Paulo, Francirosy Campos Barbosa.
– O Talibã nunca desapareceu do Afeganistão. O que não estava certo era o que ele faria no poder. Se eles fomentarem a educação no país, posso dizer que estão seguindo o islã. Mas acho que ainda é muito cedo para saber.
A única certeza, portanto, é de que elas não tinham tempo a perder.
As jogadoras viajaram para o aeroporto com os documentos escondidos nas roupas, em uma travessia que durou quase três dias. Dormiram presas ao lado de fora e tiveram que atravessar uma vala de esgoto a céu aberto, na entrada do portão Abbey Gate. Elas ficaram ali por horas, sem conseguir respirar, até saírem “pescadas” pelas tropas suecas para o outro lado da pista de pouso.
Naquele momento, havia milhares de pessoas tentando passar. Mas as jogadoras correram para entrar no avião como se a vida delas dependesse disso. Porque dependia.
O avião decolou no dia 23 de agosto com 77 atletas e as respectivas famílias em direção à Austrália, com uma parada em Dubai. Três dias depois, um bombardeio suicida deixou mais de 100 mortos no mesmo local.
Imagem de satélite, feita no dia 23, mostra a área do Portão Abbey e a vala de esgoto que divide a pista — Foto: Imagem de satélite 2021 cortesia de Maxar Technologies via AFP
Khalida Popal conduziu a retirada de jogadoras de futebol, familiares, atletas paralímpicas e até mesmo jornalistas, que cobriam o futebol feminino no país. Foram mais de 300 pessoas, desde a retomada do Talibã. Mas nunca será o suficiente.
– Temos grupos esperando no Afeganistão. Temos grupos que deveriam ir para o Canadá, mas não puderam entrar e estão no segundo país agora. Não posso dizer o nome, mas não é seguro. São condições muito ruins – explica a ex-atleta.
Agora, mesmo quatro meses após o primeiro resgate e logo depois de completar o segundo (para o Reino Unido), centenas de meninas e mulheres ainda pedem ajuda.
A história parece se repetir para Khalida. Porque ela viveu a formação do Talibã ainda criança, no Afeganistão. Tinha nove anos de idade, em 1996, quando mulheres não podiam trabalhar e meninas não frequentavam escolas.
As medidas do grupo foram suspensas em 2001, com a invasão dos Estados Unidos, mas os conflitos armados continuaram. E desde então Khalida desafiava o sistema. Era apenas o início de uma história revolucionária.
Incentivada pela mãe, aprendeu a jogar futebol e treinava escondida, em um campo isolado por trás da escola. Com o tempo, mais meninas começaram a aparecer, e ela decidiu mudar as partidas para lugares públicos.
Khalida e as amigas fizeram o esporte chegar às escolas e, assim que alcançaram um número expressivo de adeptas, foram atrás da Associação de Futebol do Afeganistão para pedir apoio. Assim, em 2007, criou-se a Seleção Feminina Nacional do Afeganistão.
Elas treinavam cercadas por militares, dentro de uma base da OTAN (sigla para a aliança da “Organização do Tratado do Atlântico Norte”). E saíam de campo sempre que um helicóptero precisava pousar. À medida que o time crescia, no entanto, a ex-capitã passou a se tornar um alvo cada vez mais procurado por extremistas.
Em abril de 2011, Khalida pensou que iria morrer. Ela estava caminhando na rua e viu quando um homem armado tentou atirar nos vidros de seu carro, mas terminou errando o alvo. Ali, a ativista soube que precisava fugir.
Khalida saiu de casa à noite, carregando apenas o computador e uma foto do time nas mãos. Só contou aos familiares mais próximos e viveu escondida por meses, atravessando as fronteiras do Paquistão, Índia e Noruega, até conseguir asilo na Dinamarca.
Distante de casa, Khalida passou a atuar por uma equipe de futebol local. Mas precisou se aposentar dos gramados após sofrer uma lesão grave no joelho.
Sem poder recorrer ao esporte, ela começou a trabalhar com meninas e mulheres em campos de refugiados na Europa. E a nova vida deu certo. Em 2014, a ex-capitã fundou a Girl Power: uma organização que usa o esporte como forma de empoderamento e inclusão social.
Khalida expandiu a própria voz. Desde 2016, inclusive, conseguiu levar a família para a Dinamarca. Agora, cria oportunidades em sete países e dois continentes diferentes (na Europa e na Ásia). Com a coordenação dos resgates, a ex-capitã ainda venceu o prêmio EqualGame, entregue pela UEFA, nesta semana.
Pela primeira vez, após quase 40 minutos de conversa, Khalida deixa o silêncio preencher os mais de oito mil quilômetros de distância que nos separam. Permite-se um momento de descanso, e parece tentar afastar de si todo o desgaste acumulado ao longo dos últimos meses.
A ex-capitã sabe que precisa estar de pé. Mas ainda pensa no dia em que poderá caminhar sem medo.
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